Certos filmes têm a capacidade especial de deixar quem assiste pensativo. Seja pela abordagem de um tema tocante para o espectador ou por uma história ousada, as formas de mexer com a audiência são várias e, mesmo assim, é incontável o número de obras que passam sem deixar uma impressão forte. Não é o caso de “O Tambor”, premiada adaptação do premiado livro de Günter Grass. O longa-metragem levou o Oscar e a Palma de Ouro, ao passo que o livro ganhou o Nobel da Literatura. Ao contrário de casos em que prêmios criam expectativas não correspondidas, este longa não deixa a desejar, trazendo um exame imperdoável da sociedade alemã durante a ascensão do nazismo e a guerra.
Agnes (Angela Winkler) nasceu depois que, praticamente por acaso, seu pai entrou debaixo das quatro saias de sua mãe. Sob circunstâncias similarmente bizarras, o jovem Oskar (David Bennent) nasceu de uma relação entre Agnes, Alfred (Mario Adorf) e Jan (Daniel Olbrychski). Em meio a esta e outras situações incompreensíveis, Oskar decide que não quer mais crescer quando completa 3 anos de idade. Ele se joga de uma escadaria e interrompe seu crescimento, ficando mais velho e consciente sem sair de sua estatura infantil.
Existe algo extraordinário sobre “O Tambor”. Começa com a expressão vibrante do protagonista no pôster do filme: a criança, carregando um tambor, olha para algo que a deixa horrorizada. Não dá para dizer que é possível extrair algum significado imediatamente, mas certamente chama a atenção. E assim como vários outros símbolos, ou faz todo o sentido sem demora, ou, no mínimo, deixa uma dúvida cativante sobre o que significam. Por que Oskar se joga de uma escada para não crescer? Por que consegue quebrar vidro com um grito? Por que não larga seu tambor de forma alguma? As questões são várias e não estão ali por simples capricho estilístico, como extravagâncias para deixar os personagens enfeitados e fora do comum. Tudo está ali por uma razão muito bem justificada, amplificando o impacto deste conto sobre uma Alemanha com bastante espaço para controvérsias além das já conhecidas.
Em 1961, “Judgment at Nuremberg” abordou o nazismo sob um ponto de vista social. Nele, um jurista americano deve determinar o nível de culpa de quatro juízes que atuaram sob o regime nazista; se eles eram meras ferramentas do sistema ou partidários de boa vontade. Em uma esfera menor, o protagonista também mostra curiosidade sobre a posição do cidadão comum enquanto membro desse sistema, seu conhecimento dos horrores por trás de discursos alimentados por orgulho nacionalista. Apresentar as impressões de um estrangeiro sobre a situação, fazendo-o descobrir as verdades desagradáveis, foi uma proposta interessante. “O Tambor” explora temas parecidos com um olhar mais íntimo. A ascensão de um dos movimentos mais controversos do último século é vista sob de uma perspectiva essencialmente pessoal, de gente vivendo dentro daquele contexto. Todos tiveram aulas de história e conhecem os fatos de forma objetiva, como um técnico analisando dados. A idéia é ser diferente do comum, o que esta história alcança muito bem ao aproximar o espectador de seu material e não ter medo de usar o simbolismo para enriquecê-lo.
Com isso, não quero dizer que “O Tambor” é melhor que o filme de tribunal de Stanley Kramer ou algo do tipo. Eles tratam de assuntos parecidos, não dos mesmos ou da mesma forma. O centro desta história é o cidadão comum, uma família que não tem nada de muito especial e que não teria nada de interessante a dizer numa primeira vista. É através dos olhos destas pessoas pequenas que as grandes observações são feitas. A situação na casa da família parece completamente normal: todos estão almoçando juntos, cantando canções e entretendo-se com gritos, risadas e a cantoria de Agnes. No entanto, um peculiar detalhe destoa de todo o resto. Ninguém comenta nada sobre os carinhos indiscretos e sexualizados de Jan por Agnes ou parece achar estranho um homem fazer isso na frente do marido da moça. Eles não vêem realmente ou fingem que não vêem? Qualquer idiota com um traço marginal de desconfiança saberia o que está acontecendo sem precisar ver a mesma cena repetir-se e, no entanto, todos estão comendo e bebendo como se nada acontecesse. A situação ser tratada com a maior normalidade possível dá um tom cômico à esta representação ousada e sincera, sem medo de afirmar o que quer por mais absurdo que possa ser. É exatamente nesta absurdez que o grande pilar da obra se encontra: tudo é um teatro em que as pessoas escolheram papéis que as cegam da verdade.
Ninguém é enganado, coagido ou manipulado. As pessoas não podem alegar ignorância pela clara exposição dos fatos, a qual dá a elas uma idéia boa o bastante para poder suspeitar de algo. A outra alternativa, se a situação for levada literalmente, é acreditar que absolutamente todos são imbecis e não enxergam o que está estampado em suas caras. Impossível. A simples existência do protagonista garante que não há como considerar falta de conhecimento ou estupidez como fatores reais. Oskar é apenas uma criança. A mais inteligente e auto-consciente de todos os tempos, mas, ainda assim, uma criança. Se alguém que não viveu quase nada para poder dizer algo com convicção entende tudo o que está acontecendo, como os adultos não entenderiam? É por isso que ele decide parar de crescer e conservar sua aparência de criança. Ele viu demais. Presenciou coisas para decidir não fazer parte da ilusão coletiva nutrida pelos mais velhos. Oskar não quer nada com escola, maturidade, política e movimentos sociais, deseja apenas continuar pequeno e levar o tambor para onde for.
A figura da criança diz muito sobre o conhecimento do povo sobre a situação do país, porém o que isso diz da própria criança? Ela também não é uma vítima. Não faz nenhum sacrifício genuíno ao parar de crescer. Sua consciência não se limita àquela de uma criança pequena quando toma a tal decisão, ela é evoluída e ainda mais perceptiva que a do resto das pessoas. O protagonista quer ser criança apenas por fora, mudando apenas o bastante para enganar-se e justificar sua cegueira com sua aparência infantil. Ele pode alegar a ignorância que os outros não podem porque ninguém exigiria que uma criança soubesse das maquinações políticas em atividade. O tambor, tratado por Oskar quase como uma parte de seu corpo, é substituído frequentemente sempre que estraga. Se considerado como um símbolo da condição do garoto, então é um reflexo perfeito de seu egoísmo e do apego à mentira que vive.
“O Tambor” é rico destes simbolismos. Com extravagâncias e imagens marcantes usadas para comunicar algo mais pungentemente, o estilo até remete um pouco às realidades fantasiosas de Federico Fellini, só que de um jeito muito mais ácido. A história não tem problema em usar a parte sórdida da realidade ou imagens fortes para comunicar duras verdades, que talvez não seriam tão bem transmitidas se estivessem numa forma mais literal. Um comício político poderia ser denunciado diretamente como manobra de massa, mas Volker Schlöndorff prefere usar o talento musical de Maurice Jarre para organicamente transformar o evento num baile dançante e mostrar como nenhum dos supostos fanáticos ali realmente leva aquilo à sério, embora defendam os ideais. Por meio de uma realidade absurda, um tom relativamente cartunesco surge. No fundo de algo aparentemente jovial, significados menos alegres esperam para serem descobertos.