“The Adventures of Tintin” não mexeu com a criança dentro de mim desde o primeiro segundo. Compreensível, já que não lembrava de quase nada do desenho clássico de Tintin na televisão. Apenas resquícios da abertura e algumas características gerais estavam na superfície, como os personagens e a entonação jovial, porém não infantil. No geral, dá para dizer que era um desenho que eu esperava ansioso começar na televisão e, no mínimo, dá para dizer que esta adaptação de Steven Spielberg faz lembranças vagas germinarem sob um novo aspecto, fiel ao que conheci um dia. Talvez isso não diga muito para aqueles que não conhecem o desenho. Com memórias envolvidas ou não, há um surpreendente trabalho de direção e narrativa por trás de uma aventura envolvente e divertida.
Tintin é um repórter com ar de aventureiro. Seus feitos mais banais sempre acabam tendo repercussões inacreditáveis e não é diferente quando ele visita a feira da cidade. Uma réplica detalhada de barco pirata chama sua atenção e ele a compra, mas ela estava na mira de Sakharine, um homem que mostra não ter escrúpulos para conseguir o que quer. O barco logo mostra ser mais importante do que aparentava, levando Tintin numa jornada envolvendo piratas, passados obscuros e um tesouro perdido.
Assisti a “Good Time” recentemente e me incomodei bastante com o fato dele se esforçar para ser frenético constantemente. Ação em cima de ação foi ruim por faltar tempo para respirar e absorver o que estava acontecendo, recuperar o fôlego para encarar mais uma sequência intensa. Uma pausa aqui e ali resolveria o problema, mas talvez não fosse a única solução. “The Adventures of Tintin” é um filme muito enérgico. Uma sequência de ação quebra tudo que está na tela e já se encaixa organicamente em uma outra igualmente grande. Existem inúmeros fatores em jogo, inclusive as ditas pausas ocasionais, porém o que me chamou mais a atenção foi a variedade. Por mais que as cenas fossem agitadas e sequenciais, elas nunca eram parecidas. Se não fosse uma mudança na essência da cena, a monotonia permaneceria junto de um sentimento de mais do mesmo.
Revendo a um episódio do desenho antigo, pude ver melhor que “The Adventures of Tintin” conserva sua filosofia de encaixar uma aventura na outra quase imediatamente. Nada é exatamente igual e nem deveria ser, tratando de mídias diferentes. Imagino que a audiência de cinema não seria muito piedosa com algumas liberdades que a animação tomava, podendo considerá-las furos ou pobreza de roteiro. Tintim está sempre escapando de algum mafioso, bandido ou monstro, e nem sempre de uma forma aceitável para um roteiro de cinema. Abrir o piso de um carro com um canivete e fugir pelo buraco logo depois do motorista convenientemente parar o carro não funcionaria muito bem. Felizmente, essas partes são corrigidas ao passo que, no geral, conserva-se a essência, o espírito do material.
No episódio que assisti, “Tintim está no alvo da Máfia de Chicago. Depois de frustrar seus planos mais uma vez, ele chega em seu hotel para descobrir que Milu foi sequestrado e que o único jeito de resgatá-lo é abanando um lenço branco para fora da janela e indo a um lugar combinado. Sabendo que seria uma armadilha, Tintim pede para o carregador de malas do hotel abanar o lenço enquanto segue o mafioso que estava na espreita até seu esconderijo. Chegando lá, dá um jeito de entrar numa armadura medieval e nocautear três bandidos com a espada para descer até as celas, onde encontra Milu, mas tem de enfrentar os homens de antes novamente. Dois são despachados com armadilhas do lugar e o terceiro, que tira uma espada de dentro da bengala, acaba se rendendo quando Tintim, ainda de armadura, empunha sua espada de duas mãos. O exemplo não é do filme, mas essa dinâmica de engatar perseguição sob disfarce em um momento de espionagem, um tiroteio e até uma luta de espadas é perfeitamente representado por “The Adventures of Tintin”. Diria até que o filme faz um melhor trabalho por ter mais ambição envolvida e orçamento para sustentar a falta de limites de Steven Spielberg na variedade de cada grande sequência.
A transição fica até melhor por conta da melhoria na qualidade visual. Fica menos bobinho e mais fácil de levar a sério ao que acontece, mesmo tudo tendo uma natureza absurda. O maior orçamento permite que soluções simples e atalhos sejam evitadas em prol de algo mais complexo. Saltos de ambiente bruscos e pouco fluídos não existem aqui. Prioriza-se fluidez na criação de uma coleção unificada de aventuras acidentais, em sua maior parte. É como uma comparação muito sensata de um amigo entre “The Adventures of Tintin” e a série de jogos “Uncharted”. As histórias desta última envolvem a busca de algum segredo, tesouro ou localidade perdida e pelo menos algumas dezenas de outras aventuras menores no meio do caminho porque algo sempre dá errado e vira a situação de ponta cabeça. O protagonista inesperadamente encontra um grupo de inimigos armados, que começam a atirar e acertam uma parede podre com um foguete, trazendo metade da construção abaixo junto com eles. Por sorte, ele consegue se salvar por um triz e encontra o grande vilão quando finalmente achava que poderia respirar. Mais uma grande cena segue e, logo, ele está em outro canto do mundo, chegando de barco e indo embora de avião sob fogo inimigo. Tanto o jogo como esta animação são experiências intensamente divertidas por construir seus grandes momentos com espetáculo, absurdo, humor e, principalmente, sorte dos personagens. Com essa combinação, não há um momento sequer fora do alcance da história.
Da mesma forma que o roteiro e a ação capturam a essência do passado sem copiar os desenhos literalmente, os visuais de “The Adventures of Tintin” resgatam o visual clássico e não resgatam ao mesmo tempo. Parecido com “The Peanuts Movie“, que transfere Charlie Brown para o 3D e conserva o estilo clássico em cores vivas e expressões faciais bidimensionais, esta adaptação de Tintim para o cinema também traz visuais em três dimensões com algumas mudanças: há uma tendência fotorrealista na equação. Parece uma péssima idéia, mas funciona surpreendentemente bem. Primeiramente porque evita que atores reais sejam muito diferentes de suas contrapartes originais. Além do mais, os designs estão mais para seres humanos cartunescos do que desenhos humanizados. Mudam apenas o bastante para Tintim ter o nariz arrebitado e o cabelo meio careca com topete, suas marcas registradas.
Completando essa grande soma com um trabalho magnífico de John Williams na trilha sonora — possivelmente seu melhor nos últimos anos — “The Adventures of Tintin” faz como seu predecessor ao enriquecer a experiência e torná-la fascinante e instigante, tensa e urgente, brincalhona e cômica. Nunca fora de sintonia, as composições refletem a identidade única da série: engraçado, mas nunca infantil e sempre preparado para uns murros ou um tiroteio. Nada é impossível no universo de Tintim. Nas mãos certas, como as de Steven Spielberg, este lema é levado ao pé da letra através de um filme muito satisfatório para os fãs de longa data e, sem razão para ser o contrário, gente buscando entretenimento de extremo bom gosto.