Pode ser uma surpresa ver que “Das Cabinet des Dr. Caligari”, um dos primeiros filmes do Expressionismo Alemão, tem os traços mais notáveis do movimento. Alguém poderia pensar que o começo do movimento traria características sutis que evoluíram com o tempo, enquanto o processo foi justamente o oposto. As qualidades já começaram explícitas, evoluíram e adaptaram-se para eventualmente influenciar fortemente o Noir. Existem exceções, claro, como “Faust” e seus marcantes visuais. Porém seus sucessos se definem mais pela inventividade de F.W. Murnau na ilustração da história do que pela exacerbação de conceitos vistos inicialmente no longa de Robert Wiene. Definidor de um movimento, este é facilmente um dos filmes mais importantes da história.
Um pequeno vilarejo do interior da Alemanha está em preparação para a grande feira anual. Várias atrações são reunidas para o entretenimento da população, inclusive uma bem curiosa: Cesare (Conrad Veidt), o sonâmbulo do Dr. Caligari (Werner Krauss). Os que se aproximam, o fazem com temerosa curiosidade, pois o sonâmbulo tem a capacidade de dizer o futuro quando acorda. Todos ficam fascinados com a presença intimidadora da dupla, mas a suspeita surge quando uma série de assassinatos passa a assolar a cidadezinha.
O Expressionismo num geral, sem limitar-se ao cinema, resume-se à representação imagética sob uma perspectiva totalmente subjetiva. As coisas não são capturadas como elas são realmente, mas modificadas e deformadas para encaixar-se no modo como o artista pensa ou se sente. No exemplo clássico de “O Grito”, de Edvard Munch, o ambiente inteiro parece ecoar o desespero exprimido pelo indivíduo pintado. Os limites entre água e terra fundem-se e as pinceladas são bem evidentes, como se fossem fragmentadas pelo grito emitido. É a grande exacerbação de um sentimento, de um ponto de vista pessoal. “Das Cabinet des Dr. Caligari” aproveita este ideal para aplicá-lo ao baixo orçamento da obra. Com pouco dinheiro para investir em grandes sets, filmagens em locação e equipamento de primeira linha, o Design de Produção incorpora as limitações sem abrir mão do efeito pretendido. Luzes e sombras são pintados no chão e nas paredes; ambientes quase impossíveis de serem criados na época são representados por pinturas ou dispostos em por elementos em perspectiva forçada. Poderia ser uma saída barata e ineficiente, mas a estilização da falta de recurso faz do resultado uma identidade singularmente eficaz.
Se há um quesito em que a audiência tem proficiência, é notar defeitos e improvisos mal feitos. Sendo um filme de 1920 e com recursos limitados, ainda por cima, tenho certeza que ninguém teria dó de esfolar “Das Cabinet des Dr. Caligari” se ele fosse ruim em sua proposta. Realmente, o filme sofreu por falta de orçamento e exibe isso, mas não de forma negativa. O gerenciamento de recursos é bom demais para ser progenitor de defeitos. Como pode-se dizer que casas encavaladas como parasitas sobre uma colina solitária é desleixo? Ruelas estreitas ziguezagueando entre construções de paredes tortas, dispostas caoticamente definitivamente não são uma gambiarra qualquer. Está tudo muito organizadamente desarrumado para ser um acidente de sorte. Seria uma relativização do que é arte? Creio que não. Por mais que não seja um filme que ostenta excelência, o efeito destas deformações, exageros e contrastes é bem sucedido em criar um clima sombrio, se não um pouco tenso.
Uma característica bem vinda, já que “Das Cabinet des Dr. Caligari” é um filme de terror, fundamentalmente. Mas que não haja expectativa sobre ele ser como obras mais recentes: este é um Terror relativamente arcaico. Fascinante também, pelo mesmo motivo. Sem violência, matanças ou um assassino icônico, esta é uma história que mostra o medo visto de uma forma mais imatura, se posso dizer. O longa captura o clima de uma época em que o entretenimento era essencialmente diferente. As pessoas eram mais impressionáveis e se aglomeravam por motivos considerados banais hoje, como o tal sonâmbulo do filme. Dentro da pequena barraca do Dr. Caligari, as pessoas se empurram para ver Cesare e depois novamente, recuando quando ele abre seus olhos. O simples fato de um homem que supostamente dormiu a vida toda e acorda apenas para dar previsões sobre o futuro já é o bastante para deixar todos inquietos.
Por outro lado, o efeito numa audiência atual é exatamente o que se espera: não tão impactante. A comoção do público no filme é um ponto positivo, mas sua presença muito mais contribui para a já eficiente construção de atmosfera do que comove o espectador. Francamente, é similar ao que vi em “Nosferatu“: visuais e atmosfera incríveis minados por uma história não tão efetiva. Só não é exatamente a mesma coisa, pois Cesare nunca mostra-se ridículo ou risível. Por mais que não seja amedrontador, ele pode se gabar de uma aparência soturna. Diferente do vampiro de expressão cômica carregando seu próprio caixão no meio da cidade. Em compensação, o enredo ajuda “Das Cabinet des Dr. Caligari” a não ser uma experiência sem graça. A caracterização sólida do sonâmbulo e até algumas reviravoltas — comentadas até hoje — garantem isso. Depois de uma história sem muitas surpresas, que dá continuidade exata à premissa sem explorar muitos terrenos novos, o final traz todo o choque que faltou antes. Dificilmente sou pego desprevenido em filmes mudos porque, ao menos os que vi, não tentaram puxar meu tapete. O único que tem uma reviravolta boa foi “O Castelo Vogelöd“, e ainda assim não está no mesmo nível.
Basicamente, são dois aspectos que deixam “Das Cabinet des Dr. Caligari” na nas rodas de conversa até hoje: sua identidade visual definidora do Expressionismo e a sequência de viradas perto do final. Não digo que há um engano em comentar principalmente esses aspectos. De fato são os dois pontos que mais me chamaram a atenção e que melhor funcionam hoje, quase 100 anos após o lançamento. Não é um filme de terror que vai deixar o espectador afetado de alguma forma, mas não deixa de ser um esforço louvável principalmente por converter a identidade visual inteira em prol da construção de um clima único. Em suma, outro clássico de importância maior que a qualidade.