Não duvido que a primeira impressão de muitos sobre este filme seja de confusão. O que diabos é “Baby Driver”? Certo, é uma música de “Simon & Garfunkel” e o nome do protagonista, que é um motorista, mas por que diabos este título? Edgar Wright é a resposta. De um dos mais inventivos diretores de Comédia em atividade, poderia se esperar algo parecido. Especialmente com “Shaun of the Dead” e “Hot Fuzz” no currículo, ambos parte da “Three Flavour Cornetto Trilogy”. Baseado nos grandes filmes de roubo e suas intensas cenas de perseguição, este longa constrói-se como uma versão leve de “Drive” e “Heat” em vez de uma comédia propriamente dita. Inspirações excelentes e um resultado nada mau, se posso dizer.
Pelas manhãs, a primeira coisa que Baby (Ansel Elgort) faz é ligar seu iPod e escolher uma playlist para energizar o dia. O caminho até a cafeteria é um passeio e tanto ao som de grandes artistas, uma forma de esquivar-se do inferno estressante vivido pelo resto da cidade. Um café para ele e os outros para seus colegas de trabalho: gente que mata, engana e executa os maiores assaltos do país. Com direito a máscaras, grandes planos e indivíduos caracteristicamente insanos, Baby passa seus dias como o motorista do grupo, uma playlist de cada vez.
Toda pessoa tem sua própria trilha sonora da vida. Músicas para momentos específicos ou para todos os momentos; para animar um dia lixo ou se entregar à fossa em desolação sonora. Pode parecer paradoxal, mas faz todo o sentido. Há momentos em que até mesmo a pessoa mais triste não quer o conforto de ninguém. Rechaça oportunidades de fazer coisas ou ir a lugares que normalmente fariam bem porque querem um tempo para racionalizar, sentir um pouco de sua dor antes de pensar em mudar qualquer detalhe. Neste caso, a música serve como uma confirmação de sentimentos, algo que valida a condição do indivíduo por meio da catarse. Quase como se o artista tivesse uma conversa íntima com quem escuta seu trabalho e entendesse o que ela passa. Outras pessoas já podem tentar o contrário e colocar um Pop espalhafatoso para tentar esquecer das dores de cabeça. “Baby Driver” e seu protagonista, Baby, compreendem exatamente o que é esta sensação de estar presente nos lugares, mas com a cabeça em outra dimensão onde “The Beach Boys” e “Queen” são as únicas coisas importantes.
O ponto mais forte, logicamente, é a trilha sonora. E não digo isso porque gosto do seleção de artistas, mas porque ela serve um propósito muito maior do que costumeiro. E, claro, me refiro aos diretores que melhor usam canções populares em suas obras, como Martin Scorsese e Quentin Tarantino, não aos fracassos abismais de “Esquadrão Suicida” e afins. “Baby Driver” não se limita a caracterizar um personagem como descolado por conta de usar um iPod para cada playlist, isso seria basear sua identidade inteira na qualidade mais superficial. Nem estaciona no fato dele escutar música constantemente para amenizar o zumbido que o atormenta desde criança, o que já seria ir um pouco mais além. Baby é um rapaz calado e quase passivo nas relações sociais. Só não dá para dizer que ele tem algum problema — como alguns personagens sugerem — porque fica claro que a música é sua forma de expressão. Ele adapta essa arte tão intrinsecamente que não é mais um artifício do cineasta, e sim uma forma de desenvolver o personagem de forma alternativa às palavras.
Na prática, a trilha sonora define forma e conteúdo. Orienta os caminhos seguidos por Edição e Direção além de dar insights sobre a condição do protagonista em cada situação nova. Isso sem contar, o clássico benefício de haver uma experiência fluída baseada nas canções de grandes artistas. “Baby Driver” é como se fosse uma longa montagem musical, um videoclipe muito sofisticado, talvez. Quase sempre há algo tocando no fundo para refletir o fato de Baby viver grudado num iPod. Às vezes é um som baixinho e quase subliminar, como quando tiram um de seus fones e o áudio sai só de um lado do cinema. Em outras ocasiões, a melodia toma conta e coloca o protagonista à seu serviço, seja tocando um piano imaginário na mesa ou caminhando no ritmo da canção. Surpreendentemente, Edgar Wright atinge uma qualidade orgânica na atuação de Ansel Elgort apesar dos movimentos sincronizados, que podem trazer artificialidade ao desempenho do elenco. Assim, é menos como um clipe mecânico em sua coreografia — “Uptown Girl“, de Billy Joel, como um exemplo perfeito — e mais como uma pessoa agindo totalmente imersa em seu universo musical particular. Tecnicamente, é impressionante por ter sucessos equiparáveis a um Musical mesmo sem ter estrutura similar ou um esforço em criar números complexos.
Além de toda a inventividade no uso da música, “Baby Driver” é, essencialmente, um filme de ação com foco em assalto. Sem um grande plano no centro da trama, os roubos são recorrentes e um problema para Baby, pois ele não está muito satisfeito com estar envolvido. Os outros personagens já caem mais para o padrão de ladrões excêntricos reunidos para cometer crimes. Sobre eles, a história aproveita suas personalidades a despeito de suas habilidades práticas. Os roubos propriamente ditos não são mostrados para deixar o palco para Baby como o piloto do grupo. A grande maioria das cenas de ação envolve o garoto demonstrando sua perícia detrás do volante em sequências de perseguição que não deixam nenhum 007 desapontado. Sem absolutamente nada de computação gráfica, tais sequências colocam veículos em fuga entre o caótico trânsito diário de uma metrópole. Para alguém conseguir fazer qualquer coisa entre tantos outros carros, ele deve ser bom e é esta a impressão passada. No entanto, as sequências frequentemente duram pouco. A ação, impressionante pelos feitos realizados e pela representação visual deles, acabava justamente quando eu achava que haveria mais espaço para ela.
Em seu lugar, retornava-se às cenas entre Baby e a quadrilha, que não são ruins de forma alguma, embora me incomodassem um pouco por parecer que tiram espaço das agitação. Pelo menos não tenho quase nada a reclamar do elenco. Jon Hamm e Jamie Foxx ambos são competentes na interpretação de personagens que realmente contribuem para o arco de Baby como um criminoso acidental. Dois caras durões por fora divergindo-se nas posturas: um serve como a pessoa que zoa e intimida o membro novo do grupo; o outro o acolhe e até o protege dos abusos do primeiro. Problemas surgem apenas quando o roteiro e seu elo fraco, o enredo, usam mal estes indivíduos. Em dados momentos de “Baby Driver”, deixam claro que não há nada que impeça alguém de se livrar de membros da equipe e, contudo, um personagem claramente instável está ali. Nunca dão motivos para ele ser essencial para a equipe e ele continua ali, passando toda a segurança de uma caixa de nitroglicerina nas mãos de uma criança. Quando a situação finalmente fica feia, não dá para dizer que foi surpresa. Dali em diante, nem aumentar a quantidade de ação resolve o declínio do roteiro.
“Baby Driver” mostra que Edgar Wright permanece um diretor inventivo como sempre. Existem idéias realmente geniais em seu trabalho como cineasta, como o uso da música para suplementar e moldar o longa-metragem inteiro ao seu redor. Tirando Musicais, pelo óbvio foco no quesito melódico-dançante, não conheço outra obra ou cineasta que tenha tido uma aplicação diegética tão boa de canções populares. Só falta um maior cuidado em certos detalhes elementares da sétima arte — como enredo e equilibrar ação — para que a obra como um todo seja mais sólida. De qualquer forma, não deixa de ser uma das experiências mais únicas que tive no Cinema.