Adaptações nunca vão deixar de dar o que falar. Sempre haverão os indignados pelo filme mudar o livro, os esperançosos de ver o livro no cinema e os que preferem ignorar tudo que não seja a obra original. Um exemplo mais recente é “Game of Thrones” e sua coleção de mudanças do material de George R.R. Martin, as quais aconteciam antes mesmo da série ultrapassar o livro. Tratando de adaptações de desenhos animados, há os deslizes enormes de “Scooby-Doo”, “Flintstones” e “Avatar: A Lenda de Aang” se saindo muito mal em representar o tom dos trabalhos originais ou, ao menos, adaptar de outra forma. Mas onde “The Wizard of Oz” se encaixa nisso tudo? É a adaptação de um livro infantil de 1900, não de um desenho. Tudo bem, pode não ser, mas nunca vi nenhuma outra obra com atores reais incorporar tão bem a essência de desenhos animados sem parecer infantilizado.
A história começa no Kansas. Dorothy (Judy Garland) é uma garota cuja energia e jovialidade não combinam com o lugar onde vive. Todos estão ocupados demais com suas tarefas para dar atenção a ela e seus problemas de criança. Ela decide fugir de casa e acaba encontrando um destino inusitado: a terra mágica de Oz, um lugar onde munchkins, bruxas e magia existem mesmo. Junto de um espantalho, um homem de lata e um leão, Dorothy busca o grande e poderoso Mágico de Oz para voltar para casa.
Há um bom tempo atrás ouvi alguém dizer que a atmosfera — efeitos especiais, figurino, design de produção — de “The Wizard of Oz” era ultrapassada nos dias de hoje. Não pensei muito sobre a afirmação porque não havia visto o filme recentemente, mas hoje posso dizer que não concordo de forma alguma. Se a expectativa é ver os cenários em computação gráfica e os personagens em figurinos complexos, equipados com prostéticos e maquiagens surreais, então recomendo baixar as expectativas. O leão não é nenhum tipo de homem-felino, mas uma pessoa dentro de uma fantasia; a roupa de metal não é metal de verdade e, no entanto, nada disso incomoda. Por mais que não seja a representação visual mais fidedigna, funciona perfeitamente. Feito quase 80 anos antes dessa análise, este clássico prevalece como um argumento imortal contra as inúmeras produções vazias de atualmente, aquelas que consideram o estímulo visual mais importante que conteúdo. Continua sendo uma experiência inesquecível porque em sua época se preocuparam com mais do que aparências. Existe substância por trás de efeitos especiais que ficaram para trás na história, uma narrativa sólida e atores empenhados em fazer aquele universo fantástico ser tão vivo quanto possível.
De certa forma, “The Wizard of Oz” funciona porque segue o mesmo caminho das fábulas e contos infantis clássicos. Ninguém fica pensando no absurdo de um elefante que voa e um marionete falante cujo nariz cresce e é amigo de um grilo. Aqui existem bruxas boas e bruxas más, pigmeus com vozes agudas, feiticeiros e soluções simples. É uma histórias completamente segura em sua fantasia, cujo contato com a realidade se refere apenas aos seus temas universalmente válidos. O subtexto que jaz por trás de metáforas como a busca de um leão por sua coragem é o que valida os devaneios da história e a eterniza para além de efeitos especiais, maquiagem e figurino. Na pior das hipóteses, ameniza um envelhecimento ruim e desvia a atenção para outra coisa melhor. Neste caso, nem posso dizer que eles são ruins, em primeiro lugar. Comparado com o melhor que a indústria oferece hoje, obviamente fica defasado. Por si, são mais que aceitáveis, além de tornados ainda melhores por um elenco dedicado e eficiente na interpretação de absurdos como um leão bípede e um homem de lata.
A outra grande parte do sucesso deste conto simples e despretensioso é o elenco, o principal responsável por esta última característica. Judy Garland entrega uma performance para uma vida toda já cedo em sua carreira — ela tinha pouco menos de 17 anos durante a produção. Não lembrava de Dorothy como uma personagem tão incrível e adorável, muito menos uma que fosse tornar a experiência ainda mais fascinante. De um lado, o universo faz um esforço para parecer mágico e incrível com vastos campos floridos, passeatas de munchkins e estradinhas de azulejos amarelos; de outro, uma garotinha do Kansas sem saber o que pensar, mas encarando tudo isso com a ingenuidade e transparência típicas da infância. Ela não tem medo de um espantalho que se mexe e dá uma bronca num leão que aterroriza seus amigos. Não é para menos também, ela tem personalidade e esses outros personagens, muito carisma. Não dá tempo de reparar na fantasia do leão quando o ator por dentro dela é tão amável e totalmente dedicado a interpretar um leão covarde. A pessoa que mais acredita na figura do homem de lata é o ator interpretando o papel, o que logo fica visível e torna a grande terra de Oz tão mais fácil de abraçar. É como “Jurassic Park“: dinossauros por si não impressionariam, o diferencial foi presenciar a surpresa genuína dos personagens em ver um brontossauro de verdade. Não basta um set colorido e um universo cheio de fantasia para convencer, é o envolvimento de personagens que eventualmente convida o espectador a entrar na experiência, partilhar uma percepção e até desenvolver seu próprio ponto de vista.
No comentado processo de intensificar seu universo fantasioso, “The Wizard of Oz” constrói a tal atmosfera de desenho animado, singular e no melhor sentido da palavra. Há situações em que o humor é anti-climático e inapropriado— como muitos blockbusters mostram — podendo também cair na infantilidade de uma piada imatura e incompatível com o tom da obra. Por outro lado, este é um caso em que ser infantil é um dos pontos mais positivos. Ver os personagens fazendo bobagens e atuando de forma caricata não é ridículo, faz parte daquele universo enxergado pelos olhos de uma menininha, é a percepção jovialmente fantástica de algo inimaginável. Difícil é ser cético em relação a uma jovem atriz demonstrando humildade diante de tudo o que acontece com ela. Se ela estivesse na fantástica fábrica de chocolate, com certeza ganharia a competição porque, mais do que tudo, ela consegue conservar certo sentimento de gratidão por estar na companhia de seus amigos, ainda que não esteja em casa no Kansas como queria. É uma das qualidades que algumas crianças têm e que, infelizmente, podem acabar se perdendo mais além.
Sendo um Musical e havendo tão poucos comentários sobre este detalhe, busco dizer que é a parte mais esquecível de “The Wizard of Oz”. Tirando a eterna “Over the Rainbow”, não posso dizer que me senti cativado pelo resto das músicas. Achei a abordagem do gênero mecânica e até desnecessária, pois se resume a uma canção após cada evento importante na história. Cada personagem introduzido vindo com uns versinhos engatilhados. Nada que defina fluidez, tratando de uma transição entre narrativa tradicional e outra musicalizada. Além disso, a moral do filme não me parece totalmente coerente por supostamente valorizar aparências mais do que atos concretos, como se estes últimos precisassem de uma legitimação formal para serem válidos.
Mais do que qualquer outra coisa, a fidelidade ao tom leve me faz acreditar que os limites do Cinema não são tão definidos como às vezes parecem. Se é possível olhar para uma atriz com a pele pintada de verde chamada de Bruxa Má do Oeste sem rir, então não sei mais o que é impossível. A viagem de Dorothy pode ser decifrada muito antes das revelações finais, mas assim como ninguém assiste a “Cinderela” esperando uma grande virada, “The Wizard of Oz” é apreciado por não tentar ser algo mais que uma ótima história de criança.