É raro um filme fazer eu me envolver tanto com sua história. Curioso, ainda, considerando que “Before Sunrise” é um filme praticamente sem história. Duas pessoas se conhecem e começam uma conversa que dura a manhã, o dia, a tarde, a noite e a madrugada. Um romance segue e o espectador acompanha seu crescimento desde o primeiro “olá”. Não é uma premissa inovadora. O amor é um tema tão presente, seja no cinema ou na vida, que é difícil encontrar alguma novidade. “Casablanca” e “Annie Hall” falam sobre o mesmo assunto e estão muito distantes em termos de abordagem. Sua diversidade evidencia como o tema já foi explorado amplamente antes. A obra de Richard Linklater apresenta uma saída inovadora e relativamente simples para o dilema da originalidade: apostar na individualidade do casal para diferenciar este de tantos outros romances.
Uma viagem de trem para Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) transforma-se em uma experiência tudo menos casual. Ele deve pegar um trem em Viena e ela continuar até a França, mas Jesse convence Celine a passar um dia na cidade até a hora dele pegar seu avião de volta para os Estados Unidos. De uma conversa casual a uma paixão marcante, os dois aproveitam seus momentos sabendo que aquela é a única ocasião em que estarão juntos.
Amores perfeitos, platônicos, frustrados, imaginários e conturbados estão aos montes por aí. No entanto, poucos ocupam a mesma posição singular de “Before Sunrise”. Ainda estou para ver outro filme que consegue ser tão surreal quanto plausível. Um casal se conhece por acaso, entra num romance espontaneamente e vive o grande sonho romântico de ficar com a pessoa amada num lugar apaixonante. Uma descrição tão idealista pode muito bem se encaixar no molde de “A Bela e a Fera“, por exemplo: Bela conhece a Fera quando o pai da garota é subitamente aprisionado pela Fera, então ela apaixona-se pelo homem por trás da criatura e vive seu caso de amor num castelo mágico. A qualidade fabulosa fica bem clara conforme cada conversa e ambiente visitado não poderia ser mais apropriado e significativo, fortalecendo uma conexão que já era forte desde o encontro no trem. É impressionante como a afinidade entre os dois mostra-se ilimitada. Não há um momento sequer em que a relação deles fica estagnada. Se ficasse, a coleção de diálogos sobre tudo e sobre nada se tornaria maçante rápido.
Isso não acontece, pois é por meio de um roteiro bem estruturado que a realidade entra em cena e ameniza o aspecto de conto de fadas. Sem ele, o contexto e a progressão do relacionamento seriam infalivelmente otimistas. Se Jesse não tivesse que voltar para os Estados Unidos na próximo dia, seria ainda mais fácil ver cada passo em direção a um final feliz inevitável. Felizmente, há um choque de realidade desde o começo. Ambivalente, ainda por cima, porque ele tanto coloca os pés da trama no chão como estabelece um sentimento utópico para “Before Sunrise”. Ele ter de ir embora na outra manhã mata o “felizes para sempre” ao mesmo tempo que dá ao casal um dia inesquecível. Para Jesse e Celine, a viagem no trem já teria sido extraordinária. Foi uma conexão única e potente, dificilmente qualquer um encontraria algo que deu tão certo. Assim, um dia para quem vive uma fantasia torna-se uma eternidade. Um apaixonado não precisa de mais nada quando tem a pessoa desejada em seus braços.
É incrível como o trajeto deles ostenta harmonia sendo fora da realidade e palpável em conjunto. A conversa no trem abordou esbarrou justamente em assuntos aleatórios na medida certa para criar uma conexão instantânea. A impulsividade jovem que fez Jesse convidar Celine para sair do trem é a mesma que fez ela aceitar. Os lugares que eles visitam e os assuntos sobre os quais conversam são certeiros. Parece que não poderia dar mais certo e, novamente, “Before Sunrise” mergulharia no território da fantasia se não fosse o roteiro. Este é um filme em que os diálogos predominam. Não importa tanto se eles estão visitando um navio, um cemitério minúsculo ou uma loja de discos, eles são apenas planos de fundo para sentimentos e idéias. O que é dito acaba trazendo realismo a um contexto mágico. O sobrenatural e o como pais podem ser um pé no saco são assuntos que já passaram pela cabeça de muita gente. Sua banalidade aproxima os personagens do mundo real e constroem uma visão de mundo nos dois. Dão a impressão que são dois seres humanos, afinal, em vez de príncipe e princesa num contexto moderno.
Ethan Hawke e Julie Delpy compartilham uma química genuína que, neste e em qualquer Romance, é essencial para tornar verdadeiras palavras bem escritas. É através deles que um enredo pouco causal brilha em sua casualidade. Dessa forma, o roteiro depende de outras formas para dar alguma direção e finalidade a sua história. Várias nuances orientam sutilmente o enredo em direção a um lugar mais concreto, é um processo mais sentido do que notado claramente. Além do mérito da própria escrita, parte desse sucesso se deve ao trabalho dos dois protagonistas na construção de um romance do zero. Hawke e Delpy não dão margem para que pensem numa alternativa, eles parecem feitos um para o outro. Vê-los fazendo nada em particular é engajante porque eles fazem isso com paixão. A atração que eles sentem um pelo outro atrai o espectador, consequentemente. Se a jovialidade excêntrica de Jesse encaixa perfeitamente com a curiosidade comedida de Celine, é porque as pessoas por trás dos personagens estão imersas em seus papéis. Sem dúvida, então, se uma pequena palavra faz o casal se atentar a uma esperança que eles reprimem propositalmente, certamente é porque ela é dita da maneira correta.
Temia que “Before Sunrise” pudesse sofrer da mesma falta de estrutura narrativa de “Boyhood“; que apresentaria outra história vazia no contexto de um relacionamento. Richard Linklater não comete este erro entregando um filme semelhante apenas por ser um grande passeio, diferenciando-se ao moldar uma paixão fantástica num arco narrativo palpável. Um casal jovem aproveitando uma variação do clássico amor de verão não sugere nenhuma novidade. É apenas quando o espectador é imerso no mundo daqueles dois que sua singularidade fica visível. Deste ponto em diante, “Before Sunrise” torna-se uma verdadeira sequência de sentir o que os personagens sentem, torcer por eles e aproveitar a oportunidade de estar naquela viagem também.