Será esse o musical definitivo da década? Foi isso que sugeriram. Há umas semanas atrás, estava numa livraria sondando por promoções de filmes e me deparei com uma edição bacana de “Les Misérables”. O preço não estava muito favorável, mas dei sorte e consegui comprar barato em outro lugar. Um amigo gostou muito de “La La Land“, mas disse que esse musical adaptado da obra de Victor Hugo era melhor; a moça do caixa também, falou que com certeza era superior. Mas será que é mesmo? Devo dizer que não. Um design de produção absurdamente elaborado traz a França do Século 19 como poucos filmes conseguem, ao passo que o elenco faz um esforço admirável para honrar o legado de mais de 30 anos do musical da Broadway. Ainda assim, isso não traz a grandeza sugerida.
Depois de servir uma pena de 19 anos por ter roubado um pedaço de pão, Jean Valjean (Hugh Jackman) está livre. Contudo, ele não tem muito o que fazer com sua liberdade quando sua ficha criminal fecha todas as portas para uma nova chance; a saída que ele vê é quebrar a condicional e começar do zero com uma nova identidade. Anos depois, uma injustiça é feita em sua própria empresa: Fantine (Anne Hathaway) é despedida sem mais e perde o emprego que alimentava sua pequena filha. Valjean vê, então, uma chance de fazer algo bom em sua vida e passa a cuidar da filha de sua ex-funcionária. Enquanto isso, o Inspetor Javert (Russell Crowe), suspeitando da nova identidade de Valjean, promete não facilitar sua vida.
Já ouvi tanto falar de “Les Misérables” que cheguei a ter uma imagem mental do filme curiosamente clara. Nada como uma expectativa quanto à qualidade, pois os comentários foram tão díspares que eu não sabia bem o que pensar. Uns diziam que era cansativo, o avatar do porquê estes não gostam de musicais, outros que era uma obra prima, impressionante pela produção e elenco recheado de estrelas. A única coisa da qual eu tinha certeza era o longa ser cantado do começo ao fim, como um grande número musical ao contrário de uma narrativa com números aqui e ali. Não sabia exatamente como me sentir em relação a isso, então fui adiando a conferida indefinidamente até “La La Land” renovar meu interesse por musicais.
De longe, o elemento mais surpreendente é a recriação da França de Victor Hugo até os mínimos detalhes, do figurino aos cenários. “Les Misérables” vai além do que já foi mostrado em várias outras produções sobre a França pós-napoleônica, deixando de lado o charme secular para explorar a porção invisível da população — não tão invisível aqui. Deixam de lado as perucas extravagantes e os banhos de perfume pela realidade de quem depende do trabalho para sobreviver. O figurino e a premiada maquiagem, em especial, ostentam um cuidado impressionante ao representar apropriadamente os atores na condição social de seus personagens, unhas sujas e cabelo desarrumado incluídos. Essa história é considerada uma obra-prima, mas seu assunto não trata de nenhum tipo de luxo. Hugh Jackman começa o filme barbudo e careca, com falhas no cabelo por conta de pauladas e piolhos. Seu trajeto, também, não tem nada de requintado. Depois que muda de vida, ele continua envolvido com o proletariado, gente sem os dentes na boca e gente usando vestidos um dia pomposos, hoje medonhos porque são usados todos os dias sem lavar. Ao redor de tudo isso, a França reflete a realidade das massas: prostitutas decadentes nas esquinas, bêbados aos tropeços e barro em todo lugar. As paredes praguejadas de bolor e musgo, assim como as mesas detonadas por cupins e grudentas de vinho, estão ali apenas como um capricho de um Design de Produção, apoiado por uma direção de fotografia que não deixa de destacar todo essa atenção aos detalhes.
Com o plano de fundo solidamente estabelecido, falta apenas uma execução à altura dos visuais esplêndidos. Quanto a isso, começo dizendo que não conhecia o musical original da Broadway e muito menos que ele era tão reconhecido. Assim, não posso dizer quão fiel ele é a este musical, o que não não torna as conquistas do elenco menos visíveis. Não posso dizer se o vocal Hugh Jackman faz jus aos atores das performances ao vivo, mas posso dizer que ele — e, surpreendentemente, outros do elenco — fazem um esforço impressionante. A direção de Tom Hooper colocou os atores cantando ao vivo nos sets, com apenas um fone de ouvido com a trilha em piano para que ficassem em ritmo. Das performances, destaque vai para Hugh Jackman e Anne Hathaway por, mais que cantarem bem, incorporarem os sentimentos de seus personagem para além do que as letras das canções indicavam. Especialmente Hathaway. Sua performance é breve e ela protagoniza uma apenas uma canção — “I Dreamed a Dream” — exceto que esta também é a melhor canção, a mais sentimental e a que exige mais de quem a canta. Em tomadas longas, sua personagem vai do sofrimento carnal para um vazio de alma causada pelas desilusões de vida. Hathaway está apenas por poucos momentos na tela, mas sua performance é uma que fica com a audiência até o final de “Les Misérables”.
É uma conquista significativa e também um tipo de problema, pois, sendo um filmes totalmente cantado, é inevitável que os números sejam comparados entre si. E, bem, “I Dreamed a Dream” estabelece um padrão bem alto. A qualidade da canção em si e a atuação de Anne Hathaway infelizmente deixam ainda mais evidente algumas limitações, como de Russell Crowe, por exemplo — embora esta esteja mais ligada à má direção de Tom Hooper em relação ao alcance vocal do ator. O mesmo acontece na hora de comparar um número com o outro, algo que “Les Misérables” tem de sobra. Os melhores momentos se encontram nas sequências com a multidão cantando com uma só voz, perfeitos representantes da abordagem social e política da história de Victor Hugo. Poderia ser apenas uma prostituta cantando sobre suas noites, sendo que amplificam o escopo e trazem uma ruela inteira delas para cantarolar; sucesso também visto quando uma taverna lotada de boêmios, vigaristas e trapaceiros se une. São momentos bons que não são maioria, um problema quando as primeiras e as últimas palavras do filme são partes de uma canção. Não sabia como encarar o fato do longa inteiro se cantado antes, hoje sinto que não foi uma boa escolha. Muitas música não tão boas quanto alguns destaques — como “Master of the House — muitas simplesmente passam batidas e outras chegam a incomodar por mal parecerem canções de fato. A situação complica quando alguns números parecem ter sido cantados só para não ter uma cena de diálogo comum. É como competir com uma cantora de ópera para ver quem tem mais fôlego: além de obviamente vencer, ela mantém a cantoria por quase três horas ininterruptas como alguém que vai longe demais para provar seu ponto. A famosa pausa para respirar teria feito muito bem aqui.
Há também uma certa pressa na narrativa — natural num filme que adapta um livro de quase 1500 páginas — que poderia ter sido suavizada, ainda assim. Alguns cortes são bruscos demais quando fica claro que Tom Hooper havia gravado uma margem para evitar justamente isso. Neste caso, o problema cai no colo da Edição. “Les Misérables”, com todos seus acertos na produção, no elenco e em algumas canções, não é o musical dos musicais desses últimos anos. O som de vozes em ritmo é várias vezes agradável, mas, por fim, é cansativo frequentemente demais.