Adaptar uma obra de um formato para outro é uma tarefa difícil e “Game of Thrones”, entre as adaptações mais populares e frequentemente criticada, está aí para provar isso. Há quem diga que é o melhor seriado já feito e outros que torcem o nariz para certas alterações dos livros. Se a adaptação é digna, é um assunto para outra hora, o ponto é que cada formato tem qualidades que não são tão facilmente transferidas. Um musical seria um exemplo de obra que conecta intimamente a progressão de uma canção com uma narrativa visual. Mas como isso funciona para algo como o Teatro, por exemplo? “Fences” é a adaptação cinematográfica de uma peça vencedora do Pulitzer e do Tony e não faz muito para esconder suas origens teatrais, uma decisão louvável, ainda que não totalmente positiva.
A história se passa durante os Anos 50, dentro do lar dos Maxson. Troy (Denzel Washington) é o homem da casa e faz questão de deixar claro que é ele quem coloca comida na barriga dos que moram ali. Ele trabalha como catador de lixo, mas sempre quis ter continuado carreira como jogador de beisebol. Troy tinha talento e sabe disso melhor do que ninguém, por isso sente tanto a dor de uma oportunidade roubada por ele ser negro. Quando seu filho expressa seu desejo de jogar futebol americano profissionalmente, a história ameaça se repetir e as tensões dentro de casa começam a se escalar.
A primeira coisa que chama a atenção em “Fences” é justamente a fidelidade às suas raízes nos palcos em forma de diálogos sem fim. Naturalmente, o teatro depende muito mais da verbalização do drama por não contar com a manipulação do tempo como o cinema; não há como ensaiar a obra por unidades, cena por cena, ou usar recursos físicos com tanta liberdade. Assim, quando uma pessoa minimamente familiar com o cinema, acostumada a ver o movimento dos corpos aliado às palavras, encontra uma enxurrada de falas é esperado que haja certo estranhamento. O estupendo drama familiar, “Long Day’s Journey Into Night“, é um exemplo de adaptação que deu certo e, de certa forma, “Fences” trilha um caminho similar; sabe explorar os dilemas da vida familiar, mas sem chegar no mesmo patamar da outra obra de Sidney Lumet.
O filme começa com Troy e seu amigo de longa data, Bono (Stephen Henderson), trabalhando no caminhão de lixo e conversando sobre o porquê dos brancos dirigirem caminhões enquanto os negros catam lixo. Mal dando uma pausa para respirar, eles já estão no caminho de volta para casa falando sobre uma garota que Troy anda de olho, depois sobre pernas e quadris e logo sobre histórias de um casamento feliz. Eles falam rápido e sem parar, uma metralhadora de palavras que deixa o espectador um pouco desorientado sobre o que diabos está acontecendo. Neste ponto, a transição do teatro para o cinema não foi tão feliz, mas fica bem claro que August Wilson, autor da peça original e deste roteiro, pega o jeito com o tempo. A sensação esmagadora de ouvir mais palavras que o cérebro pode processar não se prolonga demais, aos poucos abrindo espaço para os silêncios e para as ações.
Um dos fatores que minimiza essa avalanche verbal é o elenco de atores mais que competentes. Denzel Washington, em especial, merece todo o destaque por imprimir gradativamente o lado subjetivo de seu personagem nos longos monólogos que ele entrega. São apenas palavras demais num primeiro momento, mas logo estas refletem as angústias de um homem que foi criado a vida toda para engolir o choro e assumir suas responsabilidades. São suas histórias esquisitas e as músicas cantadas quase aleatoriamente que sinalizam sentimentos reprimidos arranjando um jeito de se manifestar. O humor exageradamente animado e seu carinho súbito quando sua esposa vem ver o que ele está aprontando é um dos toques dados para fortalecer as palavras. Numa simples sequência, Washington reforça a química com Viola Davis, a atriz por trás da mulher do protagonista, e estabelece terreno para futuras viradas de enredo. A sutileza envolvida na manifestação de sentimentos por meio de palavras é de mérito total dos atores. Enquanto em outro lado, são os diálogos muito bem escritos os responsáveis por conduzir a trama e manter o espectador interessado pelo que é dito. Afinal de contas, um bom orador sem boas palavras funciona tão bem quanto um bom discurso sem alguém bom para ler.
Atores e roteiro dão todo o suporte a uma história tão poderosa que não sofreu na transição de um formato para outro — a narrativa é a prejudicada. Me refiro aos temas e como eles são abordados, o peso das escolhas e como as coisas que acontecem nem sempre concordam com os sonhos das pessoas. Muitas vezes, estas se encontram em lugares que não esperavam estar, mas é o que a vida lhes reservou. Da mesma forma como sonhos podem orientar ou iludir, os fracassos podem ser forças poderosas no desenvolvimento humano. É disso que “Fences” trata. Mesmo com diálogos demais de uma adaptação imperfeita, o filme é eficiente em trabalhar noções de como o passado e as perspectivas de futuro influenciam quem somos; e, além disso, como a pessoa resultante pode passar tão longe do esperado, às vezes sendo perturbadoramente igual aquela da qual se fugiu a vida toda.
“Fences” tem um certo problema por ser uma peça falante demais. Adicione o contexto informal, repleto de gírias e atores que falam rápido para ter uma sensação de estar sendo atropelado por frases. Com o tempo, o roteiro cede mais espaço para as ações e a situação melhora, além de Denzel Washington e Viola Davis entregarem performances que suavizam essa condição através de falas entregue com emoção sempre ao alcance da audiência. Acima de tudo, vale a pena pelas contemplações existenciais envolvidas na vida em família.