“Long Day’s Journey Into Night” é um daqueles filmes tão bons que chega a ser impressionante como pouca gente fala dele. Eu, por exemplo, não o descobri por listas ou recomendações de amigos, mas pelas palavras do próprio Sidney Lumet, o diretor, em seu livro “Making Movies”. Lá ele descreve os detalhes do que é fazer um filme em sua experiência, além de também contar um pouco sobre como foi dirigir este drama. O livro já deu uma boa idéia de que se tratava de algo grande, mas realmente não esperava que a experiência fosse ser tão positiva.
Como o título sugere, a história se trata da jornada de um dia e uma noite com os Tyrone. Eles vivem aparentemente bem: sua casa é de frente ao mar, os dois filhos se dão bem e a todos vivem unidos, mesmo com os rapazes crescidos. No entanto, aqui as aparências são tão enganadoras quanto poderiam ser. A verdade é que os Tyrone são facilmente o avatar da família problemática, aquela que sabe criar uma boa fachada para uma centena de problemas, atritos e hostilidades. Por fora é uma casa tradicional e bem de vida, por dentro é um verdadeiro inferno.
Se considerarmos que um filme precisa de um pouco de informação antes do espectador encará-lo, então acho que nada além do que disse acima deve ser conhecido. Outras críticas e sinopses revelarão mais conteúdo, mas nesse caso em especial acho que entrar na experiência sem saber nada faz a diferença. Isso porque o roteiro se encarrega de deixar clara sua proposta logo no início. Ele trabalha perfeitamente com a noção de pista e recompensa, mostrando cena após cena — não só no começo como também mais pra frente — que há alguma coisa errada ali. Inicialmente parece que todos vivem bem, felizes, porém tudo está certo demais. Mesmo na casa mais tranquila de todas alguém eventualmente acorda de mau humor. Dificilmente existe disposição para distribuir elogios ao cabelo ou às mãos de alguém logo cedo pela manhã. A artificialidade fica no ar sem o espectador saber imediatamente o porquê.
De certa forma, é a mesma lógica criticada por “Rebel Without a Cause“: no pós-guerra dos anos 40 e 50, a família americana fazia questão de mostrar que a vida não poderia estar melhor, escondendo problemas mais profundos com prosperidade econômica. Entrentanto, a crítica de “Long Day’s Journey Into Night” corta mais fundo, muito mais fundo. Adaptando diretamente uma peça de teatro com suas 2h50 de duração, não poupam-se oportunidades para revelar os demônios dos Tyrone. Família é um tema que é muito tocante por conta de minha própria experiência, o que não quer dizer que eu goste de qualquer drama familiar, pelo contrário, acho que sou até mais crítico na hora de avaliar este tipo de história. Até o momento costumava pensar que “The Sopranos” e “Who’s Afraid of Virginia Woolf?” eram as obras que chegavam mais perto de mostrar verdadeiramente uma família e sua constelação de relações, mas devo dar crédito a “Long Day’s Journey Into Night” por fazer isso melhor que qualquer outra coisa que vi até hoje.
Talvez isso se dê pela trama ser fortemente baseada na história do autor da peça, que claramente colocou sua própria vida em casa na obra. Não só isso, ele também pediu que a peça fosse publicada apenas 25 anos após sua morte, talvez procurando evitar problemas com parentes por conta da representação deles na peça. Em “Long Day’s Journey Into Night” fica evidente a influência de um bom roteiro, especialmente como a experiência de vida pode ser uma ferramenta tão poderosa. Um filme que é praticamente uma peça de teatro, composto de diálogos do começo ao fim, pede por um elenco à altura do drama apresentado. Claramente este aspecto não foi negligenciado quando todos os quatro atores principais foram premiados no Festival de Cannes de 1962.
Os problemas de uma família dificilmente podem ser ligados a uma coisa só. É consequência da convivência que atos pequenos, considerados irrelevantes, acabem sendo importantes na construção de algo maior, como a parceria entre pai e filho ou o divórcio de um casal. De certa forma, o responsável por uma relação disfuncional acaba ou sendo ninguém em especial, ou todas as partes envolvidas, dependendo do ponto de vista. Sendo assim, não é errado apontar Mary Tyrone (Katharine Hepburn) como a figura central das dificuldades ali encontradas, contanto que ela não seja vista como a única. É difícil falar sobre as atuações sem entrar em detalhes —como e quando ator brilha. O que posso dizer é que “Long Day’s Journey Into Night” consegue o feito de unificar diversos aspectos cinematográficos sob um mesmo propósito ao mesmo tempo que reflete a dinâmica do próprio enredo. O roteiro apresenta Mary como a sorridente matriarca, que logo mostra a fragilidade de tal sorriso quando seu marido e filhos não conseguem deixar de lado suas rixas por muito tempo. Aos poucos o espectador descobre o motivo de James (Ralph Richardson) e Jamie (Jason Robards) discutirem tanto, enquanto em outro canto da casa Edmund (Dean Stockwell) lida com seus próprios problemas; então um tromba com o outro e uma discussão sobre outro assunto qualquer surge, dando uma luz nova aos conflitos de um personagem e até do que era falado antes. Mais que contar uma boa história, o roteiro brilha por desenvolver tudo isso com inteligência: segura informações de forma calculista sem deixar faltar sentido a qualquer palavra; e revela um pouco os segredos de alguém, jamais dando a impressão de que aqueles são os únicos que a pessoa tem. Cada conversa oferece oportunidades de sobra para cada ator desenvolver seu personagem, transformando tensão em fragilidade de um momento para outro.
Por fim, a direção de Sidney Lumet age de forma sutil, embora não menos eficiente, na hora de amplificar a tensão dos conflitos com a câmera. Seu tato para com a situação representada é evidente quando um simples jantar carrega toda a aflição de um tiroteio dirigido por Sergio Leone. “Long Day’s Journey Into Night” tem sucesso porque, no fim das contas, toda esse esforço em conjunto representa perfeitamente o conceito de família, ainda que de forma positiva. Por um lado, direção, roteiro e elenco trabalham juntos para entregar um resultado nada menos que sensacional; por outro, as mágoas, traumas e hábitos dos Tyrone são todos responsáveis pela atmosfera que esgota até o ser humano mais paciente.