Como a carreira de um diretor se compara com si mesma? Quando cineastas trabalham ao longo de décadas, é interessante e ainda mais notável sua evolução de temas e do domínio da técnica. Martin Scorsese está há mais de 40 anos fazendo filmes sobre os assuntos mais variados, podendo facilmente comparar diferentes períodos de seu trajeto. No entanto, boa parte da fama veio por conta de sua visão sobre os ítalo-americanos nos Estados Unidos. Como alguém que conheceu em primeira mão essas experiências, Scorsese fez de “Mean Streets” o primeiro filme que aborda diretamente a vida dos descendentes de imigrantes em solo americano. Nada muito diferente do que estava por vir anos mais tarde, apenas pouco polido e menos interessante.
Nas ruas de Nova York, um grupo de rapazes tropeça de bar em bar aproveitando os benefícios de sua vida quase criminosa. O mais próximo que chegam de serem gangsteres é usar ternos e passar tempo em botecos sujos bebendo e fumando. A inexistência de um mínimo de elegância é o que diferencia esses jovens dos figurões, o que não os desanima de tentar chegar no topo um dia. Charlie (Harvey Keitel) é um dos que tentam fazer as coisas darem certo, mas isso se torna complicado quando ele se vê correndo atrás dos constantes problemas causados por Johnny Boy (Robert De Niro): um amigo querido e completamente descontrolado, que cria mais encrenca do que é bom para sua própria saúde.
Se por um lado entendo que um filme como “Mean Streets” foi importante para a carreira de Martin Scorsese, acredito que qualidade não se iguala a importância neste caso. Primeiramente, foi seu primeiro trabalho a focar na vida dos ítalo-americanos. Em segundo lugar, foi a primeira parceria entre Robert De Niro e Scorsese, uma das mais reconhecidas e frutíferas de todos os tempos. De Niro interpreta um jovem rapaz que anda entre gangsteres como uma criança hiperativa corre entre seus colegas no parquinho, derrubando uns do balanço e irritando todos. Na vida adulta, isso se traduz em não ter respeito por ninguém e fazer o que bem entender num mundo regido por regras não escritas. De todos os seus papéis, devo dizer que este não está entre os mais icônicos. Não quando Ace Rothstein e Jake LaMotta estão na competição.
Perto da falta de atrativos vista aqui, contudo, ainda consegue ser a melhor parte de um longa carente de história, personagens bem construídos ou um universo que desperte o interesse do espectador como tantos outros filmes de gângster fizeram antes e depois. Muitos deles retratam os meliantes em seus melhores momentos de fartura, fazendo inveja com as riquezas de suas maquinações ambiciosas e das desventuras entre assassinato e crime. Esse é um dos caminhos a se seguir, mas não o único. Outros trabalhos exploram como a vida criminosa pode ser decadente, fazendo os ternos escovados serem decorativos de personagens decrépitos que ainda não sabem que estão condenados. De alguma forma, este filme não faz um retrato decente de nenhum destes dois pólos — embora esteja mais perto do lado marginal da criminalidade do que do luxuoso.
O maior problema aqui é não encontrar uma narrativa cativante — para não dizer uma minimamente concreta — por trás de tantos eventos banais do cotidiano dos personagens nas ruas da cidade. “Mean Streets” é o completo oposto de “Goodfellas” nesse quesito. Enquanto achei que esse último peca por tentar explorar absolutamente todos os lados da vida de um gângster numa mesma história, deixando-a inchada e carregada, “Mean Streets” vai na direção oposta e mostra uma coleção de acontecimentos aleatórios na vida de rapazes sem muito o que fazer além de andar bêbados com cabelos mau cortados e ternos amassados. A vida deles se resume a isso e foi esse o recorte que Martin Scorsese considerou relevante para apresentar em seu filme. Talvez seja o que tenha acontecido de verdade, mas nem isoladamente, nem em conjunto, os eventos somam para uma experiência que tem algo interessante a dizer sobre os tais caminhos perigosos da cidade ou as pessoas que os percorrem. A única preocupação da história é mostrar que eles vagam por pocilgas imundas e puteiros decadentes madrugada afora, arranjando brigas e achando que estão subindo na promissora carreira do crime.
Só que ninguém sobe nessa escada do sucesso. Nem Charlie, nem Johnny Boy. Todos estão brincando de ser gângster enquanto um maioral é mostrado de vez em quando, exercendo sua postura de chefão sem nunca criar uma consequência concreta com algum diferencial na vida dos outros personagens, já que ele mesmo mal aparece e não dá pistas de que irá se desenvolver. Chega a ser vergonhoso compará-lo com o Don Corleone de Marlon Brando, que em sua primeira cena já concretiza sua posição de poder e não muito tempo depois define toda a estrutura familiar apenas com sua presença. Aqui nada parece ter muita finalidade, com exceção do único traço de narrativa notável que é o arco de Johnny Boy dever dinheiro a um outro projeto de mafioso. De resto, os esforços de Martin Scorsese estão bem abaixo do nível que ele estabeleceu em outros filmes seus, com incontáveis cenas partindo de uma estaca zero e permanecendo lá. As cenas de pancadaria, que poderiam ter o fator ação a seu favor, não funcionam bem. Parecem mais um festival de gente agarrada no cangote alheio e são uma das várias oportunidades desperdiçadas. Uma surpresa, dado que “Raging Bull” teve cenas de luta tão bem dirigidas. Finalmente, quando o bom gosto musical do diretor se manifesta com Rolling Stones e The Ronettes, a situação cria esperança de melhora apenas para mostrar que a direção, famosa por usar canções populares e pela edição enérgica, ainda estavam para ver seus melhores dias nas mãos do cineasta.
Minha crítica a “Mean Streets” não tem nada a ver com valores de produção e presença de atores famosos. Até porque tem De Niro, que em outras obras chegou a levar o longa inteiro nas costas. Isto é, isso acontece apenas quando o roteiro sabe o que fazer com seu personagem e dá margem para, o que não acontece aqui. Esta é uma obra que não deu uma pista de que poderia ser decepcionante pelo diretor ser tão próximo ao assunto abordado e por isso surpreendeu negativamente. Ao menos mostrou que é preciso mais do que aproximação para o resultado ser bom, além de servir como referência do desenvolvimento de Scorsese ao longos dos anos.
2 comments
Otima análise
Concordo, majoritariamente, com a análise. Mas, apesar do tudo dito, não me foi tanto decepcionante o filme mesmo com o caótico não-roteiro apresentado, até porque com o seu final o qual me fez suspeitá-lo: “quer ver que vai acabar assim”, e dito e feito; o que me faz ver o filme mais como um recorte.