Quando o conceito de justiça é abordado da maneira correta, ele deixa de ser o estandarte do clichê em filmes sobre pessoas que fazem o bem porque sim. Melhor dizendo, quando a justiça é colocada contra a parede e seus limites com a injustiça são borrados, uma discussão sensacional sobre a natureza humana pode ser o resultado: o que é absolutamente certo? “Jagten” trilha um trajeto certeiro ao explorar como fazer a coisa certa é uma questão puramente subjetiva e até trágica, deixando de lado a dúvida para mostrar o impacto da impulsividade humana quando aliada ao fervor da convicção moral.
Mas como a vida de Lucas (Mads Mikkelsen), um querido professor de maternal, poderia ser envolvida em algo tão grave? Ele é um dos professores mais dedicados e todas as crianças fazem festa quando ele abre o portão da escola, sem exceção. Então a combinação da imaginação fértil de uma garota, imagens inadequadas e um pouco de raiva geram uma mentira pequena, porém crítica, que coloca Lucas numa situação delicada: ele deve limpar seu nome perante pessoas que já o acusaram e julgaram de antemão.
Não é novidade que a lei frequentemente deixa a desejar nos momentos em que mais se precisa dela. Nesses casos, a vontade é fazer o que ela foi incapaz e trazer a justiça de outras formas que não estão nas regras. Às vezes isso significa a clássica vingança justiceira, que quebra as leis por um bem maior e justifica os meios com os fins. Aqui, a história é outra. As pessoas nem esperam pela falha da justiça antes de tecer seus próprios julgamentos e consequentes ações sobre o suposto evento abominável. O sucesso de “Jagten” é resultado de vários elementos que somam perfeitamente na exposição da qualidade da imperfeição da natureza humana, mas alguns se destacam. Thomas Vinterberg, diretor e roteirista, acerta precisamente em pelo menos dois pontos essenciais para este sucesso: como um acontecimento pequeno pode atingir escalas estratosféricas, com a veracidade estando inversamente proporcional às consequências; e a forma como o fator humano se mostra elementar numa questão que deveria estar mais no racional do que no emocional.
Analisando fatos, não há o que questionar. “Jagten” nunca tenta usar a dúvida como combustível do roteiro da mesma forma que “Dúvida” — como o próprio título deste sugere. As cenas que precedem a polêmica deixam bem claro qual lado da história está certo e o longa usa esta inocência comprovada como ferramenta essencial para fortalecer a discussão dos limites da moralidade. Evidenciam impiedosamente quão longe o lado errado vai para demonstrar suas convicções originadas em uma mentira. O que torna toda a situação mais interessante é que todo esse alvoroço surge do nada, de um simples dia na escola como qualquer outro. A situação se escala muito rápido e deixa Lucas sem chão, condenado e punido antes de saber quais são as acusações contra ele, sem amigos para recorrer por estes também estarem contra ele. Seu caso é delicado e a oposição já age achando que a lei não será o bastante para puni-lo devidamente — ou indevidamente, como se sabe. A proposta de Vinterberg passa longe de tentar canonizar o protagonista de Mads Mikkelsen quando livra-o de culpa, ele não é uma figura cristã que recebe a punição dos pecadores injusta sem resistir. Mikkelsen permanece curiosamente sereno em seu dilema sem nunca deixar sua reação ser passiva, ela passa sutilmente pelos mais variados estágios, indo da despreocupação à surpresa, da indignação à resistência e, eventualmente, à sua própria ação.
O personagem poderia se livrar de maiores dores de cabeça e ficar de cabeça baixa até tudo acalmar, mas prefere trilhar seu próprio caminho em gelo fino. Enquanto isso diz muito sobre quem ele é, funciona muito mais como um catalisador para as atitudes dos outros e, consequentemente, fala sobre eles também. Lucas é um homem que tenta manter o alto astral apesar dos problemas de sua própria vida pessoal — ele está em maus lençóis com a ex-esposa — e isso é visto claramente quando ele está trabalhando. Os colegas de trabalho reconhecem e admiram sua afinidade com as crianças enquanto elas não escondem sua alegria de vê-lo chegar na escola. A comunidade é pequena e unida, todos se conhecem e nada fica muito muito tempo por baixo dos panos, o que se torna um problema quando uma acusação pesada é feita contra alguém que sempre foi considerado um dos pilares da comunidade. Amigos de décadas não precisam de muito convencimento para sentir suas amizades traídas e logo tornam um então irmão numa pessoa digna de perseguição, preconceito e até violência. Primeiro, “Jagten” estabelece este sentimento de fraternidade e união com um elenco que representa os sentimentos rudimentares da dinâmica daquele lugar, então ele acaba com isso sem aviso. O protagonista ainda não entende de onde saiu uma mentira como aquela e demora para compreender o crescimento daquela bola de neve. Enquanto isso, o espectador se vê preso a um filme que mostra a pequena mentira em flagrante e todas suas consequências trágicas sabendo que tudo é um grande engano. Thomas Vinterberg não se limita a mostrar a corrupção de gente que se acha muito de bem para questionar seus próprios atos, ele o faz deixando o fator indignação ligado desde o começo. Cada ato não surpreende pelo simples fato de acontecer, em primeiro lugar, a surpresa vem por conta de termos certeza de que os justiceiros lutam em nome da injustiça.
Interpretações fortes alimentam uma história que é feita principalmente de sentimentos fortes. “Jagten” sabe exatamente quais são os pontos fracos do ser humano e deixa para os expor num ambiente em que eles possam ser ainda mais pungentes. Mostrar uma noção diferente de justiça num universo onde o crime reina absoluto é uma coisa, distorcer o conceito e mostrar como nem tudo é tão direto num contexto fraterno já torna tudo mais interessante.