Fritz Lang foi um grande diretor alemão que, por vezes, é esquecido quando falam nos melhores diretores da Hollywood clássica. Sua obra mais famosa é, e sempre será, “Metropolis“, um filme-mudo tão revolucionário que inspirou incontáveis outras obras por seu universo e idéias únicas; mas como “The Big Heat” mostra, existem outros trabalhos seus que merecem atenção. O próprio “M“, de 1931, é um grande exemplo de inovação da forma quando usou tanto o som — ainda uma novidade — como os visuais para complementar a narrativa. Nele, o diretor deu continuidade às tendências expressionistas, influenciando fortemente o próprio Noir nos visuais, gênero que exploraria anos mais tarde.
Num departamento de polícia onde os detetives vivem de salários insuficientes, a única motivação para eles é amor pela profissão… ou um dinheiro por fora. A corrupção domina o departamento, para a grande infelicidade do honesto Dave Bannion (Glenn Ford). Então um policial comete suicídio sem mais e seus colegas mal erguem dois dedos para investigar, levantando as dúvidas de Bannion. Ele decide investigar sozinho, mas não tem muito para onde partir até que um assassinato suspeito o coloca numa trilha em direção ao coração da corrupção.
Este é um Noir que pode parecer extremamente pouco inspirado em sua premissa numa primeira vista. Um protagonista, que serve como a personificação da boa índole, entra numa missão gigante de lutar contra os imorais e maldosos. No entanto, existe uma razão para o título brasileiro ser “Os Corruptos” e não “O Justiceiro”: o plano de fundo abre um leque de possibilidades muito maior que seu protagonista. “The Big Heat” não apresenta um vilão que causa sozinho todo o tormento na vida dos cidadãos inocentes, existem forças e motivações diferentes por trás de cada um que deixam o caldo mais grosso. Antagonizar o mal é entrar numa odisséia homérica, colocar-se contra a maioria das pessoas ao contrário de um grupo seleto. Em “The Godfather“, por exemplo, temos inimigos pontuais no Capitão McCluskey e em Virgil Solozzo; um representa a podridão da polícia e o outro um facínora maior entre criminosos. Se a luta é contra ladrões — como Bannion os descreve — e se considerarmos que quem não se erguem contra o mal é tão ruim quanto os que o praticam, então quantos oponentes existem? Talvez os cidadãos inocentes não sejam tão inocentes assim.
Essa dinâmica torna o conflito apresentado por “The Big Heat” muito mais interessante que um atrito raso entre duas partes antagonistas. Quando Dave Bannion decide buscar justiça, ele não encara um assassino em série foragido, mas gente que segue ordens, que busca se aposentar com uma pensão generosa, subir na carreira ou simplesmente não colocar em risco um salário humilde até demais. Há uma questão subliminar, mas não menos interessante, sobre a validade da jornada do protagonista. Para ele tudo é muito preto no branco, os bandidos devem pagar por seus atos, enquanto a realidade mostra-se um pouco menos rígida. Para ele, suas ações são totalmente justificadas. Ele acredita em seus objetivos e é tão determinado a cumpri-los que torna fácil simpatizar com sua meta. Se ele realmente está certo como acha já é outra história, que faz este filme entrar nos domínios do Noir e não se limitar ao gênero Policial. Boas intenções têm resultados trágicos, mesmo quando existe competência colocando elas em atividade.
Mas não é pelo plano de fundo ser riquíssimo que o protagonista merece pouca atenção. Sim, ela torna sua empreitada muito mais complexa que a justiça de um homem só, mas o personagem em si é muito mais que suas ações. A primeira palavra que vem à cabeça quando pensa-se em Dave Bannion é justiça, mas o que há por trás dela? Ele não é bidimensional para se limitar a isso. Por trás de um dos personagens mais icônicos do gênero está uma coisa que raramente se encontra num mundo cão do Noir: o amor sincero de uma mulher. Quando a norma vigente parece ser o egoísmo, um sentimento puro como esse deve ser preservado e protegido dos invejosos e mal intencionados. A figura da mulher aqui é um dos pontos fortes tanto para a história como para a constituição do próprio protagonista. São elas que alimentam e validam suas atitudes, fornecendo uma fonte de alegrias e, por vezes, ressentimento na hora de fazer o que deve ser feito. Em um lado, há a pureza da esposa de Bannion e sua ausência de qualquer tipo indecência; noutro, uma mulher que perde sua artificialidade quando é injustiçada por quem alimentava sua luxúria — além de belamente interpretada por Gloria Grahame. E quem mais para representar um homem em conflito que não Glenn Ford? Sua interpretação punho forte entrega um dos personagens mais carismáticos de todo o gênero; não só um policial durão que defende a lei, mas um que esconde um lado macio e cheio de mágoa por trás de uma atitude viril e palavras afiadas. Sejam seus momentos de vigilante ou de homem comum, ele nunca deixa de transparecer um sentimento de integridade, alguém que tem uma personalidade bem definida e independente da situação em que o mundo o coloca.
A cereja na banana split é apresentar esse grande emaranhado de motivações com resultados questionáveis e personagens que transcendem seus estereótipos num ritmo incrivelmente bem cadenciado. A duração econômica ajuda nesse aspecto, mas tudo flui com tanta naturalidade que quase não se nota que “The Big Heat” passa mais tempo com o protagonista andando em círculos do que resolvendo os problemas. Tudo tem sua função, no fim das contas; mesmo assim, poucas vezes a inatividade foi tão rica como aqui.