Assistindo a “The Sound of Music” com uma amiga, ela fez uma pontuação interessante: “Eu não conseguiria fazer o que ela faz usando esses saltos”. Bem, nem a própria Charmian Carr, atriz do filme. Aparentemente, ela se machucou durante a cena do gazebo em que saltava de banco em banco. Mesmo vindo de um dos maiores musicais de todos os tempos, essa acrobacia não passa de uma firula leve perto do que “French Cancan” entregou 10 anos antes. Jean Renoir dirige esta combinação de músicas simpáticas e coreografias impressionantes, que no mínimo mostram que saltos altos não impedem que talento de verdade apareça.
É uma época de entretenimento noturno em Paris, as várias casas de espetáculos atraem desde os engravatados até a porção mais humilde dos parisienses. Mas Henri Danglard (Jean Gabin) não tem aproveitado muito as duas partes de fama e fortuna; seu estabelecimento é bem conhecido, já seu bolso não vê a cor do dinheiro faz tempo. Ele já não liga tanto para sua situação até que finalmente encontra uma solução para seu problema: reviver uma dança que saiu de moda. Nini (Françoise Arnoul) é sua nova estrela e o cancan seu espetáculo, com eles e um novo espaço Danglard pretende mostrar porque as noites de Paris são tão famosas.
O protagonista escolhe o nome “French Cancan” quando dizem que só os nomes americanos fazem sucesso. Cancan não seria o bastante para chamar a atenção, mas French Cancan… já é outra história. Pode não fazer muita diferença numa primeira vista, mas na prática este filme mostra que não tem nada de americanizado além do nome. Ambientes, visuais e músicas são franceses da atmosfera ao figurino, ostentando uma identidade que foi vital para a criação de outro Musical popular: “Moulin Rouge“. Este é um caso em que a inspiração supera o inspirado, sem dúvida. Um se esforça vergonhosamente para criar uma atmosfera lustrosa e cheia de glíter, achando que cada é uma obra de arte por encher a tela de perfumarias; o outro consegue ser atraente simplesmente sendo fiel ao seu universo. Jean Renoir sabia bem que seu material tinha uma extravagância perfeita para um musical, ele mostra que meias de seda e um belo vestido têm muito mais charme que a aquarela inteira de cores na mesma imagem.
Mas o que realmente chama a atenção em “French Cancan” não são apenas números musicais que ficam na memória. Por trás de palhaçadinhas e cantorias existe uma história que tira proveito do cantar e dançar e arranjartempo para desenvolver personagens, dando profundidade ao espetáculo. Facilmente, Jean Gabin é o maior responsável pelo sucesso da trama. Ele interpreta o empresário e bon vivant Danglard, um homem de meia idade que viveu o bastante para ver seus traços, uma vez bonitos, murcharem; em seu lugar ele aprendeu a usar o encanto de olhos azuis e uma boa conversa. Inicialmente, ele não parece muito preocupado com a falência de seu clube e sua ruína comercial, mesmo assim, ele junta o que resta de sua boa vontade para descobrir o que sobrou de bom na cidade. Além de um estilo de dança, ele encontra talento e promessa numa humilde lavadeira com poucas perspectivas de vida além de casar com um padeiro. É a oportunidade de ouro: combinar uma dança ousada como o Cancan com a inocência de uma garota estranha naquele mundo. Ela acha que está entrando numa fria, mas logo vê o quanto aquilo pode dar certo. Danglard, por outro lado, é mais do que um rosto charmoso e cheio de altruísmo, ele tem seus próprios planos.
Esta é uma história que explode de verdade em seu final. Tudo que vem antes mantém a audiência apenas entretida o bastante para conferir qual é a desse tal cancan. Uma direção de arte recria o Século 19 sem a parte das ruas imundas e da miséria para reforçar a atmosfera glamourosa da Paris dos sonhos; uma visão beirando o infantil, cheia de cor e ambientes que fazem jus à fama da cidade. Aos poucos Danglard caminha da miséria para um começo de sucesso, ele encontra uma garota à altura de sua ambição, mas uma crise de ciúmes entra no caminho; acha a idéia perfeita para dar a volta por cima, porém não há dinheiro para reformar um lugar. O roteiro é construído de forma que tudo será acertado com um grand finale, apresentando problemas ao longo do caminho para aumentar as apostas gradualmente. E o final vale tanto a pena assim? Com certeza. Se existe uma coisa que de “French Cancan” faz bem é valorizar o investimento do espectador, pois tudo que deu errado, todo o tempo ensaiando e falando sobre quão avassalador o espetáculo será é recompensado quando chega a hora da verdade. Os shows interessantes do começo ficam parecendo atrações de quinta categoria, já a bagunça de anos depois chamada “Moulin Rouge” passa vergonha frente ao que é visto aqui. Não existe competição quando o espetáculo de música, dança e visuais incríveis é resultado dos atores fazendo tudo aqui sem mentiras. As cores não são produto de manipulação digital e as pessoas não são computadorizadas, a direção de Jean Renoir é uma que favorece o movimento dos corpos e sabe fazer uma multidão de dançarinas fantasiadas se tornar uma maravilha coreografada.
Depois de não gostar tanto de “A Grande Ilusão” não esperava gostar muito de outro filme de Jean Renoir. Fui ver porque nunca havia visto um musical francês, pensei que poderia ser uma boa idéia. Minha expectativa estava certa e encontrei uma obra à altura dos grandes musicais americanos. Não é nenhum “Cantando na Chuva“, mas não ser uma obra-prima está longe de ser motivo para vergonha. O conjunto da obra com certeza irá agradar os fãs do gênero com história, personagens e espetáculo competentes.