Devo dizer que dos três filmes de Hector Babenco assistidos nessa última semana esperava que “O Beijo da Mulher Aranha” seria o melhor. Com certeza foi bom, mas quem se saiu como o melhor foi “Ironweed”, uma obra subestimada considerando as opiniões por aí. Talvez tenha sido uma questão de má sorte ou algo do tipo, pois o material-base não é nada menos que um livro vencedor do Pulitzer, enquanto no front encontram-se os incríveis Jack Nicholson e Meryl Streep. Diria que é uma jóia inesperada, um filme que junta pó nas locadoras sem nem mesmo merecer esse esquecimento.
Numa esquina suja da Nova York dos Anos 30 dorme um vagabundo de ressaca, Francis Phelan (Jack Nicholson); seus dias são resumidos a vagar pela cidade em busca de um trocado para encher a cara quando chegar a noite. Ficar estupidamente bêbado parece ser uma solução comum para não morrer de frio ali, algo com que Helen Archer (Meryl Streep) certamente concorda. Mas as coisas não foram assim sempre. Nos tempos de ouro, ela era uma cantora famosa do rádio, ele um jogador de beisebol das grandes ligas. Hoje apenas tentam sobreviver com trocados, bebida barata e o que tiver para comer.
Ao contrário de tantas obras de Anos 30 que favorecem o ponto de vista do gângster e do cidadão bem estabelecido, “Ironweed” escolhe como protagonista o cara esquecido por todos; o o mendigo engraçado que aparece por 15 segundos antes de sumir em qualquer outro filme. Alguns podem até pensar que não existe uma boa história numa vida sem perspectiva, mas aí estarão completamente enganados. “Ironweed” mostra que por trás de meias furadas e camisetas de suor em cima de suor existe uma vida interessante. O mistério de uma vida desprovida de glamour é desconstruído e o que vem dela é incrível em sua humilde natureza. Esta não é uma história de fatos incríveis, mas da relevância que uma vida aparentemente sem graça pode ter. Isto é, nas mãos certas de um diretor como Hector Babenco, que mostra evolução diante do que foi visto em seus últimos trabalhos.
O que mudou? Orçamento? Elenco forte? Talvez, mas nada é tão diferente assim para justificar uma mudança tão notável, desmerecendo os esforços do diretor. Eu critiquei a postura impessoal de Babenco em outros longas e disse que elas matavam o impacto de certas cenas críticas. Caso as coisas não tivessem mudado, “Ironweed” seria uma das obras mais desinteressantes de todos os tempos. Esta é uma história que pede por intimidade, uma câmera que se enfie em espaços apertados para mostrar os limites da comodidade de um bêbado e o mais importante: um diferencial para tornar tudo aquilo interessante. Felizmente, a direção não é algo do que posso reclamar aqui. Ela usa bem os grandes atores do elenco e deixa o conflito de seus personagens evidente. O único vilão aqui, se é que posso chamar dessa forma, é o roteiro e sua falha em manter a história visível, com uma noção de progressão. O perigo aqui era mostrar um filme que se limita a um derrotado pela vida vagando sem rumo por duas horas — uma proposta propriamente desinteressante. Mais ou menos na metade do caminho este é o sentimento passado, faltando aquela dica de que tudo está indo para algum lugar. Por mais que o vazio existencial seja uma questão importante aqui, o roteiro faz bem em não se prender a este sentimento e não deixar quem assiste no limbo do tédio.
Quando “Ironweed” se propõe a apresentá-los, faz os problemas de seus personagens serem sentidos e compreendidos. Claro, é muito engraçado ver Jack Nicholson alfinetando amigos bêbados demais para entender que estão sendo ofendidos, mas seu personagem é muito mais que o mendigo com um par de neurônios ilesos. “Vagabundo arrumadinho. Tenho um vagabundo arrumadinho e sensível na minha carroça” é como descrevem o homem. Andarilhos não deveriam ser ignorantes, drogados e desalmados? Parece que não. Com mais história de vida que muitos engomados, o protagonista de Jack Nicholson sustenta o filme mesmo quando as coisas parecem pender para o pior. Sua atuação, curiosamente, é um tanto diferente do que se espera do ator. Quem procurar mais da clássica postura de louco se decepcionará, pois seu personagem contém sua extravagância a momentos pontuais e nem por isso entrega uma atuação menos competente. Este filme não mostra as barbaridades daquela vida para revelar a razão de tudo no final. Sem esconder o motivo por trás daquele estilo de vida, a sacada aqui se torna descobrir o que aquilo significa para o protagonista e o que ele vai fazer sobre o assunto. Por um momento, o roteiro quase dá a impressão de que nada será feito e que tudo será em vão. Quase, pois as coisas chegam em um lugar no final das contas. Isso também não quer dizer que é a típica história de superação, é mais justo e apropriado classificar essa obra de Babenco como uma exploração da vida que todos vivem: de arrependimentos, de possibilidades, de vitórias e derrotas. E com um bônus: quem a conta é um vagabundo, porém arrumadinho e sensível.
Com uma boa chance de ter sido mediano, “Ironweed” supera os sinais de que o pior estaria por vir quando entrega dois últimos atos poderosíssimos; ao final do filme mal dá para lembrar que houve um trecho devagar no meio. Por mais que não seja perfeito, não dá para dizer que o roteiro não é fiel a trajetória de seu personagem: ora vagaroso, ora engraçado; triste quando necessário e tocante sempre que possível. Realmente não esperava encontrar algo tão bom aqui.
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A crítica ja´é antiga (cinco anos e tanto não é tão pouco), mas acho absurdo que qualquer um não note o quanto Babenco era muito acima da média na direção de atores, conseguia coisas que Nasgisa Oshima e William Wyller conseguia.
Esse cara, HBm conseguiu fazer dois dos filmes que não consigo assistir e não ficar aos prantos, um é esse e outro é “Pixote – A Lei do Mais Fraco”. se em Pixote tirava o máximo dos amadores (os que interessam de fato no filme), em Ironweed tira a alma de dois monstros sagrados.