Como traçar a linha entre o real e a ficção sem pender muito para um dos lados? Em teoria, essa é uma questão facilmente respondida, porém não é incomum ver filmes que tentam representar a vida real sem ser um Documentário necessariamente. O Neorrealismo Italiano, por exemplo, frequentemente usava não atores como personagens de suas obras para um efeito mais fidedigno. Talvez essa tenha sido uma das grandes inspirações de Hector Babenco na hora de fazer “Pixote”, uma vez que ele recruta garotos de periferia para os papéis principais e se propõe a retratar sua realidade. Se isso funciona tão bem aqui quanto para seus companheiros italianos já é outra história.
Preso pela polícia com apenas 10 anos, o pequeno Pixote (Fernando Ramos da Silva) é enviado a um reformatório que está mais para um inferno na Terra. Qualquer um que chega lá com certeza não sai melhor do que entrou quando as condições são desprezíveis e o tratamento é pior do que negligente: fazem questão de tratar mal os moleques lá. Não importa se a pessoa é criminosa ou não, todos acabam sendo punidos pelo sistema e pelas pessoas que fazem ele supostamente funcionar. Pixote e seus colegas, por outro lado, têm outros planos.
Aquela tal linha entre ficção e realidade é tênue em “Pixote”, trazendo consigo uma dualidade além dessa mistura entre dois universos tão ligados e distantes ao mesmo tempo. Por um lado eles estão unidos por um sentido, a arte é um reflexo da realidade sob um ponto de vista menos tradicional — se for apropriado classificá-la assim — ao mesmo tempo que, por mais perto que possam estar, eles nunca serão a mesma coisa. Esta história procura ilustrar a realidade de milhares de jovens brasileiros daquela época e que, muito provavelmente, não mudou tanto assim hoje em dia. Aliás, mesmo se tivesse mudado o propósito não perde sua força: sofrimento passado não é sofrimento esquecido. Hector Babenco incrementa o sentimento de realismo escalando crianças da periferia como atores, a parte boa deste longa-metragem.
É comum ver por aí pessoas que veriam este filme e simplesmente julgariam todos como vagabundos, bandidos que foram cortados pela raiz antes mesmo de ter a chance de fazer o mal. Se por um lado as atitudes dos personagens reforçam a idéia de que eles não passam de criminosos em miniatura mesmo, suas atuações revelam um segundo lado para essa história. Julgando fatos por cima, não há dúvida de que assaltar o cidadão alheio é um ato que rejeita qualquer tipo de simpatia de quem assiste. Mas é nos momentos de calma, nos respiros entre os crimes que tudo se revela. O protagonista enche a boca de jargões adultos e provavelmente se acha mais homem imitando os mais velhos no modo de agir. Por trás de trapos velhos, um problema de atitude e noções controversas de como ganhar dinheiro existe algo mais; um garotinho que brinca com o volante de um carro parado e mostra vulnerabilidade no primeiro sinal de simpatia de uma mulher. É uma criança ainda, apesar de todo seu esforço em tentar provar o contrário. Os outros personagens não desapontam. Lilica (Jorge Julião) é uma transexual surpreendentemente segura de si num contexto aversivo daqueles e Sueli (Marília Pêra) é uma prostituta com seu próprio dilema moral. Todos personagens com algo a dizer além de sua caracterização. Curiosamente, Babenco não tenta justificar nada com esses planos de fundos; a contradição entre essência e atitude não é usada para manipular o conceito de moralidade.
Ainda assim, algumas coisas me incomodaram na trajetória desses personagens. O roteiro sabe apresentar os personagens muito bem, mas não sabe muito bem o que fazer com eles na história, que por vezes parece um pouco perdida. Sem uma noção de direcionamento, algo que dê a impressão que as coisas estão caminhando para algum lugar, muitos eventos começam da mesma forma que terminam: sem fazer muita diferença. Entretanto, o problema aqui tem mais de uma fonte, indo além de uma questão de apontar o dedo para um culpado apenas. O roteiro sofre por não saber como fazer a profundidade dos personagens ir além deles mesmos, ou seja, fazer eles se desenvolverem através das relações entre si. Muitas vezes uma interação que poderia gerar frutos interessantes se limita a uma questão de ciúmes ou de autoridade barata. Um personagem sente ciúmes do outro, que se engraça com outra pessoa, e isso resume o único conflito relevante durante muito tempo. Em outros momentos, é a direção que deixa a desejar. O elenco do filme é composto em boa parte por não atores, gente que não sabe mostrar emoções convincentemente sem que elas sejam reais. Se por um lado essas emoções reais trazem o mesmo benefício do realismo dos italianos de anos antes, por outro não há como usar isso o tempo todo. Quando os limites do elenco se apresentaram, caberia ao diretor administrar melhor certas cenas que não ostentam o lado bom de atores não profissionais na produção. Infelizmente, a câmera de Hector Babenco, novamente em seu posto afastado, se coloca numa posição desfavorável que ressalta as limitações dramáticas do elenco e por vezes até os deslizes do roteiro ocasionalmente bagunçado.
“Pixote” é considerado um grande sucesso aqui no Brasil e até mesmo pela crítica estrangeira. Não esperava nada deste longa-metragem, mas devo dizer que me surpreendi quando encontrei um filme bom, mas ainda longe da excelência, ser tão elogiado. Existem elementos interessantes aqui, sim, a abordagem mais naturalista não deixa de mostrar seus benefícios — como se pode ver no elenco. Sendo uma proposta arriscada, faltou apenas um cuidado maior com as limitações que vêm junto.