Todo filme é um reflexo de sua época. Até os filmes de época mais novos dizem muito mais sobre nossa sociedade de hoje do que aquela da própria história. Exemplo disso é a recente história contada em “Carol“, na qual duas mulheres têm um caso em plena década de 50. Por um lado é um olhar sobre aquela sociedade restritiva e conservadora, por outro é um estandarte da luta pelas liberdades sociais que acontece hoje. Claro, existem obras de escopo limitado que perdem seu impacto com os anos.”Philadelphia” não é um desses filmes. Por mais que seu tema central não seja mais tão polêmico ele conserva sua potência por transcender os limites da premissa.
Andrew Beckett (Tom Hanks) encontrou o sucesso logo após sair da universidade, ou melhor, o sucesso encontrou ele quando a maior firma de advocacia da cidade o chamou para trabalhar lá. Ele sempre fez seu trabalho com dedicação e esforço, dificilmente podendo ser chamado de qualquer coisa perto de incompetente. Só há um único detalhe que ninguém sabe: Andrew é gay e luta contra a AIDS. Quando seus chefes descobrem sua doença, ele é demitido, levando-o a entrar com um processo contra a empresa por discriminação. Seu advogado de defesa? Joe Miller (Denzel Washington), um homem com sua própria cota de preconceitos.
Realmente, hoje não há tanta discussão sobre a controvérsia da AIDS. Mesmo assim, a doença ainda é considerada grave e as campanhas de prevenção continuam firmes, especialmente quando não há cura. “Philadelphia” foi feito numa época em que a condição era considerada “doença de gay” ou “imuno-deficiência relacionada a gays”, um tempo de ignorância que trouxe preconceito e violência social de bandeja. As pessoas não sabiam o que diziam, achavam que apertos de mão eram o bastante para infectar os outros. Lançar uma grande produção sobre o assunto era, então, um grande passo no trajeto de esclarecer as coisas. Mas não é só disso que essa obra fala, há muito mais que uma explicação médica ou uma defesa dos direitos humanos. Acima de tudo, é uma história de vida, de desconstrução de crenças, do valor da vida humana e, claro, de uma briga de advogados em tribunal.
Não usar a AIDS como o único artifício dramático é o que evita que “Philadelphia” seja outra daquelas obras que perdem seu poder com os anos. Andrew Beckett ser despedido pela discriminação de seus chefes ainda é um tema central, mas essa questão não se resolve numa explicação de que a doença não é um bicho de sete cabeças. Pouco importa hoje em dia se o espectador está bem informado sobre a condição, no fim todos sabem que é recomendável usar proteção. É a partir da construção e desenvolvimento de personagem que a mensagem é transmitida. Conhecer um pouco melhor a história de Andrew e Joe torna toda a questão da doença mais pessoal, assim evitando qualquer tipo de olhar técnico que possa distanciar o espectador do que realmente importa — seja a doença ou simples empatia com os personagens. O que torna este filme tão bom é a forma como o ser humano deixa de ser limitado por estigmas, mostrando que ninguém é resumido por um diagnóstico médico ou por plena ignorância. Grandes atuações de Denzel Washington e Tom Hanks tornam fácil se envolver com a história contada e sua química não precisaria de mais nada além da mais pura sinceridade para convencer, porém o espectador é apresentado a mais. Além de uma relação boa em dois, separados eles são pessoas com personalidade o bastante para se sustentar por si. Sendo eles os representantes dos valores e atitudes que compõem aqueles personagens. atuações sólidas tornam-se aina mais importantes para que a evolução de cada um seja notada.
Diferente de vários dramas de tribunal que, na verdade, passam pouco tempo dentro da corte, “Philadelphia” dedica boa parte de seu tempo a depoimentos de testemunhas e objeções de advogados. Estruturar a história sob um enredo de tribunal foi a maneira que a produção encontrou de tornar o produto comerciável. A proposta é criar suspense e dar substância ao conflito do protagonista, mudando o foco de um estudo de personagem para um conflito externo, uma estrutura mais comum no circuito comercial de cinema. O único problema é que ela nasce meio morta desde o começo, pois falham justamente na parte de criar o tal suspense. Não vou revelar o final por mera formalidade, mas fica bem claro desde o começo qual vai ser a conclusão daquele processo. Talvez porque a consciência social sobre esse assunto seja mais madura hoje em dia, embora ache que este não seja a verdadeira razão. A única parte realmente boa de toda esse lado jurídico é o intenso duelo verbal entre os dois lados, que não impressiona tanto por colocar o destino do julgamento em risco, mas por escancarar os limites da imoralidade do ser humano.
Alavancada por duas interpretações competentes, a história de uma pessoa com AIDS deixa de ser apenas isso e se torna um retrato do valor da vida humana. “Philadelphia”vai além de desmistificar uma doença, o ponto aqui é muito mais forte — e consequentemente mais duradouro — porque mostra que qualquer pessoa merece respeito e dignidade, algo que ainda está longe de acontecer.