“Rashômon” é uma das obras mais famosas de Akira Kurosawa, chegando a ser considerada um dos grandes motivos por trás do prêmio de “Melhor Filme Estrangeiro” no Oscar. O longa ganhou um prêmio honorário em 1951 antes mesmo da categoria ser oficializada em 1956, com a premiação de “La Strada”, de Federico Fellini. Premiações à parte, minha intenção não é invalidar a competência de Kurosawa. Mas devo dizer que esperava mais de uma obra tão popular e bem falada. Com vários pontos certeiros, o problema é justamente o aspecto mais elementar: a estrutura da história.
Num dia chuvoso, três camponeses se abrigam debaixo de um prédio em ruínas. Depois de minutos sem uma piscada sequer, surge um assunto interessante: um samurai assassinado na floresta. O lenhador (Takashi Shimura) diz que não entende como as coisas aconteceram e tem toda a razão, afinal os depoimentos sobre o crime são todos contraditórios. Três elementos estão envolvidos nesse mistério: o samurai, sua esposa e Tajomaru (Toshirô Mifune), um bandido infame. Cada um tem sua própria versão dos eventos, com detalhes e tudo mais. Porém interesses egoístas em cada testemunho obscurecem a verdade.
A idéia de Akira Kurosawa é bem clara com “Rashômon”: colocar a credibilidade do contador de histórias em xeque. Apresentando um enredo fragmentado em vários pontos de vista, ele não só deixa o espectador confuso, mas também aponta como nem tudo deve ser aceito literalmente. Essa é a parte óbvia do roteiro, cujo significado se baseia principalmente na forma da própria narrativa. A outra parte não tão explícita já tem um pouco mais a dizer. Dessa vez, através da forma como os fatos são manipulados e que, por sua vez, se mostrou única em seu tempo. O único trecho da trama ocorrido no presente é o dos camponeses na chuva. Todo o resto surge como flashbacks dos depoimentos sobre o assassinato. Sendo assim, o enredo se fragmenta em vários pedaços, versões diferentes dos mesmos eventos, cada uma com suas particularidades. Se por um lado essa abordagem é apropriada à proposta, em contrapartida ela não cria uma experiência realmente fluída, pecando principalmente em termos de ritmo.
Talvez todo o alvoroço por “Rashômon” tenha se dado por conta de conquistas inéditas na época, as quais, infelizmente, não têm o mesmo impacto hoje. Inicialmente, ele foi rechaçado pelo estúdio que o financiou, então veio a onda de sucesso: a vitória do Leão de Ouro no Festival de Veneza, o Oscar em 1951 e os recordes de bilheteria para um filme legendado. A narrativa fragmentada e os flashbacks contraditórios entre si também eram um chamativo interessante para um cinema que seguia regras bem definidas. Algo que hoje já não é uma característica tão inovadora assim.
Este é outro daqueles casos em que o responsável por acertos e defeitos é a mesma coisa. Quebrar a narrativa em pedaços é menos interessante pela inovação da forma cinematográfica do que é pela diversidade dos relatos. Não é uma simples questão de ponto de vista — na qual os mesmos fatos são contados por pessoas diferentes. Aqui os testemunhos simplesmente não batem. De toda uma grande história, apenas dois fatos permanecem os mesmos, todo o resto muda. Dizer qual a versão mais plausível beira o impossível com tamanha nebulosidade sobre tudo. Mais do que simplesmente aproveitar os benefícios da variação e da contradição, o filme faz seu material render através da mudança significativa. Mudar os detalhes para deixar um relato diferente do outro é fácil; saber quais elementos devem ser alterados para tornar a mudança interessante é mais complexo. Kurosawa entrega contradição com substância, distorcendo o concreto de forma que nada seja gratuito. Enquanto o assassino do samurai fica desconhecido, os valores culturais permanecem os mesmos independentemente da testemunha. É aí que Akira Kurosawa faz sua mágica, usando a própria tradição japonesa para aprofundar as alegações de seus personagens e, mais importante, evitando que a repetição seja um problema.
Por mais que essa estrutura faça sentido na proposta e tenha seus pontos fortes, ela não favorece o ritmo e torna a história cansativa. A manipulação dos fatos de fato é boa, embora esteja longe de compensar a sensação de que o filme progride de maneira intermitente, ou seja, uma hora está muito parado e em outra está agitado, em um momento desvairado e em outro quase apático. Essa dinâmica de começar, parar quase completamente e depois retomar sem muita suavidade entre trechos é o que estraga parte da experiência de “Rashômon”. É uma questão de Edição e Direção, apesar de não ser algo que se resolve com simples competência técnica. Exemplo disso se vê quando os eventos em tela sempre mostram-se sempre bem apresentados. Num escopo menor, elas fluem perfeitamente; numa visão mais geral, as transições de uma sequência excessivamente dramática para outra quase desprovida de sentimento não descem bem.
Um bom filme que ficou claramente abaixo de minhas expectativas, “Rashômon” infelizmente mostrou-se como outro daqueles clássicos que falham em equiparar a empolgação de outras pessoas. De forma alguma é uma experiência negativa, mas existem claros problemas de ritmo e estrutura. Sim, eles estão ligados a idéia central do roteiro sobre contradição, só não funcionam tão bem assim.