Por algum motivo desconhecido, eu achava que “Hugo” era uma animação até uns meses atrás. “Olha só, Martin Scorsese dirigindo uma animação!” — eu pensava. O tempo me mostrou que estava errado, mas quem bater o olho rapidamente pode até confundir a fotografia no estilo loja de brinquedo com algo irreal, tipo uma animação. No fundo minha confusão não foi tão absurda, uma vez que a realidade criada por Scorsese pode muito bem ser confundida com fantasia. Aqui nada é exatamente o que parece: a tragédia se camufla na inocência e a realidade arranja lugar na ficção para mostrar o amor do diretor pelo cinema.
A trama se passa na Paris dos Anos 30, mais especificamente na movimentada estação Montparnasse. Nela, uma madame e seu cachorro temperamental tocam um café ao lado da pequena floricultura de uma gentil jovem, que amolece os joelhos do incansável inspetor da estação. Sempre na espreita, o jovem Hugo (Asa Butterfield) mantém os relógios do lugar funcionando enquanto dá um jeito de sobreviver sem um tostão sequer. Seu dia a dia é uma aventura, mas é um estranho robô movido à engrenagens que o fascina de verdade. A máquina foi deixada para ele por seu pai, a verdade por trás dela é um pouco mais complexa.
Não sou nenhum doente por filmes em 3D, mas devo admitir que demorei para assistir a “Hugo” porque muita gente falou bem do efeito. Não só isso, pois até quem critica o efeito chegou a dizer que este é um dos poucos exemplos bons de verdade. Se quem não gosta acabou gostando é porque realmente havia alguma coisa ali. Não foi muita surpresa, então, me deparar com a terceira dimensão sendo aproveitada como poucas obras conseguem. A surpresa de veradade, porém, foi ver que as coisas saltarem da tela e terem profundidade mais parecem uma perfumaria quando a fotografia estonteante é vislumbrada. Não foi de graça também que troquei as bolas, o cinematógrafo, premiado com um Oscar, não deixa a desejar.
Para falar a verdade, é difícil dizer exatamente qual o segredo do sucesso dos visuais. A resposta fácil seria dizer que acertam em tudo. Assim como em qualquer filme grande, o produto final é resultado de trabalho em equipe. Mas enquanto muitos longas não transmitem esse sentimento de cooperação, “Hugo” passa a noção que nada poderia ser feito individualmente. Isoladamente é fácil dizer que os efeitos especiais de ponta ajudam a manter a imersão ou que a fotografia dá um caráter fantasioso aos cenários; e enquanto é totalmente sensato elogiar esses aspectos, eles nada seriam sem uma direção de arte competente. Ou ainda o 3D, que também seria outro pé no saco gratuito se Martin Scorsese não tivesse escolhido a dedo as imagens. Talvez a receita do sucesso aqui seja exatamente o que todo cineasta quer para uma obra sua: um conceito interessante executado por profissionais competentes. A arte conceitual da direção de arte dá vida a grande estação, os sets colocam isso na prática e tornam-se uma grande casa de brinquedo na câmera de Robert Richardson. Scorsese apenas completa o pacote colocando a magia de seu fotógrafo nos lugares certos.
No entanto, os visuais são apenas parte do espetáculo. Longe de uma demonstração de proeza técnica, este filme conta uma grande história. O protagonista é uma criança, mas que não haja engano: não é um filme infantil burro. Pelo contrário, a história apenas aproveita a perspectiva inocente para lidar melhor com assuntos sérios. Estes não são invalidados por isso, apenas mostram que a vida é mais do que se afundar em desgraça. Tratando-se de uma criança, então, é totalmente compreensível que a história evite ser realista demais, seria até inapropriado. Felizmente, a vida de Hugo Cabret não é somente flores. Por mais que o foco não seja sua miséria, ela nunca é ignorada e acaba sendo usada de forma inteligente para momentos mais dramáticos. Já o outro lado da história funciona como uma carta de amor para o cinema. Agora seria um ótimo momento para falar de algumas revelações do enredo, mas vou me conter. Apenas digo que uma grande homenagem é o resultado de uma história real com um pouco de ficção. São vários fatos que trocam a melancolia do mundo real por um faz-de-conta meio cômico não muito longe de “Grand Hotel Budapest“. Mais do que simplesmente transpor a homenagem do autor, Brian Selznick, Martin Scorsese faz toda essa admiração parecer muito pessoal. Sem alguns de seus toques, talvez alguns espectadores iriam apenas pesquisar sobre uns eventos no Wikipédia. Com o que é oferecido aqui, alternativamente, o espectador tem a chance de conhecer em primeira mão onde começou a fábrica de sonhos chamada Cinema.
Sabendo quem era o diretor, não esperava nada menos que um bom filme. Curiosamente, o resultado foi ainda mais positivo que o esperado. Nem uma animação, nem um filme infantil bobalhão, “Hugo” é um filme singular; em parte por criar um mundo tão impressionante como este. Vendo rapidamente não há nada fora do comum, porém a fidelidade do filme ao seu protagonista vai além. Paris pode ser a cidade do romance ou um recanto de miséria, depende apenas do ponto de vista.