Simbolicamente o último filme exibido no Olhar de Cinema, “Kollektivet” ostenta roteiro e elenco invejáveis, os quais resultam numa história nada abaixo do sensacional. Ironicamente, sua qualidade me entristece por ser tão claramente superior à muitos filmes do festival. “Mas não há nada de diferente!”, podem dizer. Estes que acusam o longa de ser tradicional podem parar para reparar que seu diretor, o dinamarquês Thomas Vinterberg, fez parte do Dogma 95. Aos não familiares, este foi um movimento que instituía uma série de regras para a produção cinematográfica, entre elas: as filmagens devem ser sempre feitas em locação; a música não pode ser produzida separada das imagens; e a câmera deve ser de mão. Se isto não é fugir da norma, então não sei o que é. Comparativamente “Kollektivet” é realmente mais próximo do convencional do que outros longas, embora não seja preciso analisar profundamente para ver que ainda é diferente do que está no circuito comercial.
Com o falecimento de seu pai, Erik (Ulrich Thomsen) recebe de herança uma enorme casa. Sem saber bem o que fazer com o imóvel — ele acha que é muito espaço vazio para três pessoas — ele é convencido por sua esposa a trazer gente de fora para morar com eles. Amigos são chamados para dividir o espaço e o aluguel, revitalizando um casamento do qual ela confessa estar um pouco entediada. Sete pessoas são chamadas para morar com eles e testar um experimento de resultados incríveis no começo, mas que é abalado profundamente quando um dos moradores toma uma decisão polêmica.
A primeira qualidade que me vem na cabeça quando penso em “Kollektivet” é divertido. O elenco de mais ou menos 10 personagens é uma reunião de pessoas carismáticas e singulares, cada uma cativando por motivos diferentes. Essa atenção dada pelo roteiro cria um rol de personagens que torna difícil não se identificar com pelo menos uma pessoa. Contudo, tanta gente traz suas limitações. Não há tempo para desenvolver todos igualmente, então apenas algumas características devem ser escolhidas para definir quem é quem. Não pode ser algo clichê, nem algo ambicioso e consequentemente incompleto. Aqui a escolha de qualidades é bem pensada, tornando o envolvimento com os personagens descomplicado e natural. Por sua vez, isso depende muito do “quando” além do “o quê” para ter sucesso, ou seja, saber qual o momento certo para dar atenção a cada um e não deixá-los ficar muito de lado. Nesse quesito Thomas Vinterberg acerta em cheio.
Vilads, o filho pequeno de um casal da comunidade, tem de pouco a nenhum desenvolvimento além de sua caracterização inicial. Ele é uma criança quieta, comportada e com uma escolha de frases no mínimo curiosa: “Eu morrerei aos 9 anos”, diz ele. Sua cara não sugere nada menos que uma criança educada e gentil, até a hora que solta frases como essa e choca todos ao seu redor, incluindo o espectador. São pequenos momentos assim, baseados no adorável choque de ouvir algo diferente de conversas vazias e papos furados que constroem os sucessos aqui. O resultado é um clima leve e agradável de acompanhar, tornando “Kollektivet” uma história completamente acessível que satisfaz tanto os que buscam entretenimento quanto os que querem um filme com substância. Acredito que não seja à toa que este seja um dos poucos trabalhos do festival que vai ser distribuído comercialmente e rodado nas salas de cinema do Brasil. Com certa folga é a obra mais comerciável das apresentadas, com “Operação Avalanche” ficando um pouco atrás. Ao contrário do que pode-se pensar, uma história com maior potencial comercial não deve ser criticada, e sim aplaudida por conseguir fazer um bom trabalho sem limitar seu público.
Ver as pessoas vivendo uma vida absolutamente normal em conjunto é tão chato quanto ver alguém fazendo o mesmo sozinho. A aposta aqui é mostrar como a experiência é algo mais do que uma extravagância gratuita para servir de base para o roteiro. “Kollektivet” convida quem assiste para fazer parte dos eventos daquela grande casa, não apenas presenciá-los. Vivenciar os altos e baixos de uma vida em comunidade é a alma do negócio, algo que remete muito à popular idéia de querer morar perto dos amigos e nunca perder contato. Vale dizer que nostalgia não é exatamente algo explorado pelo roteiro, mas acredito que a vida em comunidade fale por si. Quando crianças, há o medo de perder contato com os amigos caso estes mudem de escola; a adolescência tem a transição entre ensino médio e faculdade; e, finalmente, adultos costumam sumir quando cada um segue seus próprios interesses. Independente da fase da vida há sempre a tendência ou desejo por união. Consciente disso, Thomas Vinterberg não toma lados e mostra uma experiência equilibrada de êxtase num lado e melancolia do outro; efetivamente uma visão moderada, ainda que claramente ficcional, de como seria a vida naquelas circunstâncias. Afinal de contas, romantizar o sonho de viver com os amigos já passou pela cabeça de todos em algum momento, não precisa de um filme para martelar a idéia.
Ainda que triste por muitos dos filmes do festival não serem tão bons quanto “Kollektivet”, fico extremamente contente por ele estar lá, em primeiro lugar. Enquanto muitas das obras exibidas mostram técnicas e artifícios diferentes numa tentativa de inovar a sétima arte — frequentemente falhando em criar bons resultados — é interessante ver como um roteiro direto ao ponto como este permanece como um dos pontos altos do evento. E melhor, ele tem sua porção de mudanças da dita norma padrão. Dizer que é mais do mesmo simplesmente não se aplica.