Quando achei que não poderia ser surpreendido encontro “O Manuscrito de Saragoça”, possivelmente o filme mais complexo do 5º Olhar de Cinema. Claro, dizendo isso eu desconsidero completamente “A Cor da Romã“. Este último não é um trabalho profundo ou complicado, sua forma e falta de estrutura o colocam no patamar do incompreensível. Já este longa-metragem polonês também não é uma experiência muito fácil de digerir, mas por motivos mais palpáveis: ele passa das 3h de duração, é de língua estrangeira, possui uma história levemente surrealista e tramas dentro de tramas. Pelo menos no final o espectador sai com algo concreto, sabendo que presenciou uma obra de arte trabalhosa em vez de horas de cinema auto indulgente.
No meio de uma batalha, um soldado arranja abrigo numa casa abandonada. Esquecendo do terror que acontece fora da porta ele explora o lugar e senta para ler um livro enorme, descobrindo que, na verdade, é a história de seu avô. Este avô era Alfonse van Worden (Zibgniew Cybulski), capitão da guarda Walloon. As aventuras de Alfonse então passam a ser contadas em duas partes. Seu objetivo é cruzar a Serra Morena pelo caminho mais curto, porém é alertado para não o fazer por conta de espíritos malignos que assombram o trajeto. Sem dar atenção ao aviso, o capitão segue em frente e entra numa corrente de eventos bizarros.
Se “Inception” é referência de história dentro de história hoje é porque “O Manuscrito de Saragoça” fez isso muito antes em 1965. Tramas com várias camadas e toques de fantasia sugerem que nem tudo o que é mostrado é real, plantando a dúvida e respondendo pequenas questões num ciclo gigantesco de semear o caos. Revelam alguma coisa só para introduzir outra virada para deixar tudo estranho novamente. No começo, a confusão parece ser mais simples do que é. O protagonista sabe que está literalmente voltando ao ponto onde estava antes e faz o que pode para quebrar esse ciclo, mas aparentemente é vítima de seu próprio destino. O espectador, assim como ele, pode apenas observar aquele processo e tentar extrair algum sinal de sanidade conforme a objetividade fica nebulosa e as 3h02 de filme tomam conta.
Quem assiste fica exatamente na mesma posição que o protagonista: sem saber mais ou menos o que diabos está acontecendo. Os eventos se repetem e muitos personagens não falam coisa com coisa, mas tudo isso é consciente e feito para tentar desviar a atenção do espectador, tirando ele um pouco da função de tentar desmantelar a trama. Curiosamente, o próprio protagonista sabe que muito do que presencia é besteira, que falam e falam em metáforas para desperdiçar seu tempo e evitar que ele descubra o que não deve. Essa conexão com o protagonista não se dá apenas em nível metalinguístico – por ambos saberem as mesmas informações – mas também porque a atuação de Zbigniew Cybulski é muito boa! Acredito que seja um pouco mais difícil sentir-se conectado com alguém cujo idioma é incompreensível, mas neste caso é evidente que o ator tem certa segurança sobre o que faz, ainda que o personagem esteja num mar de dúvidas. Mas segurança e insegurança não são opostos? Com certeza. Sendo assim, dizer que é uma atuação sólida talvez seja mais apropriado, pois quaisquer que sejam os sentimentos do personagem o ator consegue representar todos convincentemente.
No entanto, o que mais chama a atenção aqui é a história. Inicialmente tudo é confuso e até um pouco chato. Não pelo ritmo permanecer invariável, e sim porque não me senti preso ao que era contado. O começo tem muitas reviravoltas para pouco envolvimento do espectador. Então chega a segunda parte e mostra porque Martin Scorsese e Francis Ford Coppola gostaram tanto de “O Manuscrito de Saragoça” a ponto de financiar uma restauração do longa em 2001. Em certo momento surge um cigano, que conta uma de suas aventuras envolvendo outras pessoas que também têm histórias para contar. Pode até parecer a clássica encheção de linguiça para alcançar uma duração de filme Épico, mas de forma brilhante tudo faz sentido no final. Uma história se liga a outra e às vezes a mais de uma, preenchendo lacunas e até dando um novo sentido ao que aparentemente já tinha sido concluído. Ao final dessa reviravolta resta ao espectador apreciar um roteiro muito bem escrito, cujo cuidado com detalhes é o grande núcleo do clímax; não é o que acontece que surpreende, mas como acontece. Essa perícia, no entanto, só aparece na segunda parte, a qual é tão superior à primeira que a história principal perde um pouco o holofote. O retorno daquelas mais de 3 horas investidas ainda é bem positivo, embora parte da experiência bem que poderia ter sido mais enxuta.
Este sim é um filme que pode ser chamado de complexo e surrealista. Um olhar rápido mostra que “O Manuscrito de Saragoça” dá vários nós na cabeça do espectador, mas com um fim em mente sempre. O único problema é que há uma diferença considerável de qualidade entre as duas partes, que não aparece sem deixar a impressão que a longa duração foi um pouco além da conta,