Para alguns “How Green Was My Valley” pode ser apenas mais um clássico selecionado para o festival, outro filme bom de John Ford, mas para muitos é motivo de grande controvérsia: foi ele que roubou o Oscar de Melhor Filme do idolatrado “Cidadão Kane”. Concordo que foi uma decisão pouco sensata, embora não me considere entre os radicais que pregam o ódio contra o vencedor. Este conto sobre tradição e família está longe de ser decepcionante ou ruim, sendo mau visto ao longo dos anos apenas porque a concorrência mostrou-se muito mais importante a longo prazo.
A força que gira as engrenagens de um pequeno vilarejo no País de Gales é a mineração de carvão na região. Praticamente todos os homens da vila tiram seu ganha-pão dali, alguns poucos tendo a oportunidade de escolher outro caminho. Todos vão para a mesma igreja, vão juntos trabalhar, cantam a mesma canção e praticamente pensam da mesma maneira. Representando os ideais, as crenças e a cultura desse povo está a família Morgan: um casal de meia idade, quatro filhos grandes, uma filha e Huw (Roddy McDowall), o filho caçula. Vistas pelos olhos do garoto, as histórias e dificuldades dessa família são acompanhadas sob um olhar nostálgico.
Como uma história que não é construída tanto pelos seus fatos, mas pela maneira como estes são contados, “How Green Was My Valley” tem sucesso em grande parte pela forma como John Ford usa a nostalgia a seu favor. O diretor nasceu nos Estados Unidos e a direção desta obra nem era dele em primeiro lugar. William Wyler era o encarregado até abandonar o posto quando os estúdios cancelaram as gravações no País de Gales — a Segunda Guerra Mundial impossibilitou a proposta. Sendo assim, este não era exatamente o projeto de vida de Ford. No entanto, qualquer um que desconheça esses fatos pode muito bem achar que ele nasceu e se criou no vilarejo retratado, que a obra representa parte de sua própria vida e por esse motivo seu amor pelo material é tão evidente. Talvez o cineasta não desse a mínima para o vilarejo, talvez ele tenha se identificado com o conteúdo. De qualquer maneira, uma de suas grandes conquistas é dirigir de forma que a nostalgia — o combustível do filme — mova o espectador da mesma forma que aparentemente o move.
Faz todo o sentido que seja assim, uma vez que a história é narrada por um Huw mais velho. Ele relembra os eventos como alguém que está longe de casa e sente falta do lugar que o acolheu durante tantos anos. Num misto de saudade com melancolia a história se agarra a todos os momentos da vida naquele vilarejo. Não apenas os momentos bons são lembrados como também os tristes, os simples e os complicados. Dessa forma, o olhar da garoto funciona como uma mente de verdade: é impossível excluir seletivamente os momentos ruins e ficar apenas com as memórias boas. Se a vida real fosse assim, o número de pessoas voltando com ex-namorados seria bem alto. Numa decisão extremamente feliz, o filme evita este caminho e conta as coisas do jeito que aconteceram de verdade — no plano da ficção, claro. Como reflexo da fidelidade do roteiro à uma visão objetiva e do suposto amor do diretor pelo assunto, o espectador se identifica com a história sem esforço; a catarse fica mais forte e coloca quem assiste numa posição empática. Se não familiar, o sentimento de saudade da casa — ou do passado, em geral — é muito acessível aos que não passaram por algo parecido.
No entanto, colocar o garoto como um pseudo-protagonista é uma decisão ambivalente: há o mencionado lado bom, que se beneficia de uma certa imparcialidade em situações que uma criança não entenderia — como pai e filhos discutindo negócios; e o lado não tão bom, que torna alguns pontos da narrativa inconsistentes com o ponto de vista escolhido. Não é algo que mata a experiência e desliga o espectador de sua imersão, mas certamente prejudica ao menos um pouco a lógica do roteiro. Para relatar uma experiência, o contador de histórias deve, no mínimo, estar presente de modo que sua fala seja verdadeira. Claro, sempre há a possibilidade de alguém ter contado a história para ele, embora isso vá diretamente contra toda a fidedignidade estabelecida até então. Naturalmente, quando o garoto some do holofote há de se perguntar se a história passou a ser contada pelos olhos de Deus ou seja lá quem esteja ali. O roteirista que adaptou o livro homônimo de Richard Llewellyn deve ter esquecido que o meio cinematográfico não é o mesmo que o literário.
“How Green Was My Valley” foi indicado para 10 Oscars e levou 5 para casa: Melhor FIlme, Melhor Direção, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Fotografia em Preto e Branco e Melhor Direção de Arte. Não acho que nenhum prêmio tenha sido um absurdo, pois no que se refere aos elementos premiados não há margem para colocar defeito. O preto e branco de alto contraste erra completamente o “Como Era Verde Meu Vale” do título, mas acerta no que realmente importa, que com certeza não não é a cor literal do vale. Na época o preto e branco não era tão popular como decisão estética relacionada ao passado, já hoje ganha essa característica a mais, juntando-se aos tons sóbrios e fortes de preto para capturar a melancolia nostálgica das lembranças. Pintada por esses tons de cinza está a direção de arte também premiada. Devo admitir que não lembro nem os indicados desse ano nessa categoria, então nem me aventuro a dizer se o prêmio foi justo. O que posso dizer é que não me decepcionei nem um pouco com o que vi: sets que reproduzem o ar bucólico de casas de interior, palco para um elenco confortável com o ambiente em que está.
Então voltamos novamente ao ponto em que a análise começou: o controverso Oscar de Melhor Filme. Continuo achando que “Cidadão Kane” merecia ter ganhado por seu impacto no Cinema e por ser melhor, no geral. Não só o prêmio principal mas também o de Melhor Direção, pois é nela que estão as grandes jóias do trabalho de Welles. Pelo menos estes são alguns dos poucos pecados de “How Green Was My Valley”, ainda uma demonstração do cinema de bom gosto.