O que um enterro, com todo seu clima mórbido, tem a ver com uma bela mulher de muitas qualidades? Se a mulher não for falecida, pouco. E quanto a um almoço em família, qual sua relação com a opressão de movimentos fascistas? Depende da família, pois sempre há a possibilidade do totalitarismo fazer parte das ideias de alguém. Finalmente, qual a relação entre muitas cenas de “Amarcord”, de Federico Fellini? Numa visão tradicional, quase nenhuma. Este é facilmente um filme que acaba sendo taxado de confuso, esquisito e sem sentido. No entanto, um olhar mais atento revela que há um elo ligando tanta extravagância.
Este elo, ao contrário de muitos filmes, não é exatamente o enredo. A trama não é do tipo que leva o espectador numa aventura e pode até parecer que não sai do lugar por boa parte do tempo. Nos Anos 30, época em que o regime fascista era forte, uma família passa por altos e baixos. Estes e outros eventos da peculiar cidade são vistos pelos olhos de Titta (Bruno Zanin), um garoto que compõe a parte jovem dessa família rodeada de tradição e costumes fortes.
Em meados dos Anos 40 e 50, o Noir aparecia como um novo movimento cinematográfico enquanto entrava em alta também a Psicanálise, a teoria de Sigmund Freud sobre o funcionamento psíquico do homem. Mais tarde, uma nova geração de críticos franceses revisitou várias obras americanas de anos antes e deu sentido a elas, enxergou-as com novos olhos e ligou os pontos entre o cinema e outras áreas, entre estas a Psicanálise. Desde então, não sei bem o que aconteceu, mas noto que é extremamente comum atribuir o adjetivo “freudiano” a qualquer obra que vá um pouco mais a fundo em seus temas. Claro, falando de maneira geral tudo é freudiano, afinal de contas sua teoria fala sobre o comportamento humano. No entanto, o uso do adjetivo nem sempre é sensato. Felizmente, “Amarcord” me trouxe uma alegria a mais por mostrar que talvez seja aquele filme digno de tal adjetivo.
Ter relação com Freud é ter relação com o desejo, a pulsão por algum objeto e a satisfação que este pode trazer. Talvez essa seja exatamente a conexão que muitos procuram entre as cenas supostamente aleatórias de “Amarcord” — como um recorrente motociclista em alta velocidade e um garoto feliz em andar pela neve. Ao menos para mim faz com que o filme funcione, deixando de ser uma reunião de cenas legais e engraçadinhas para se tornar algo digno de nota. Há algo por trás dessas ações, não uma motivação concreta que leva alguém de um ponto a outro, e sim uma força mais profunda que torna eventos bizarros em metáforas. O pai da psicanálise chama isso de desejo, o princípio do prazer. A história sempre mostra alguém indo atrás de algo, alguém fazendo o que acha certo para satisfazer suas ânsias. Para quem passa seu tempo em cima de uma moto barulhenta, isto é adrenalina; para o pai de um filho doente, é passar um tempo de qualidade com ele. Para Federico Fellini, é outra coisa. Famoso por ser um artista que se coloca muito em seus trabalhos, o cineasta faz de cada obra uma exploração de seus pensamentos e gostos mais profundos.
Sem tornar “Amarcord” a exceção, o diretor dá tanto espaço aos desejos de seus personagens quanto aos seus. Qual o centro disso tudo? A madonna, a mulher, a figura feminina e o clima afrodisíaco que acompanha. De uma forma ou de outra, a mulher aparece como uma figura proeminente. Quase sempre como uma exposição do amor profundo do diretor, porém sem nunca ofender ou denegrir. Pelo contrário, tomadas de quadris largos e bustos fartos não são reflexos do desejo sexual carnal, são quase como uma homenagem ou uma glorificação da mulher. Sobra espaço até mesmo para uma crítica, ou melhor, sátira ácida ao fascismo. Tal aspecto funciona bem na hora de contextualizar historicamente o enredo, embora não tenha um papel muito maior que isso.
Entretanto, há um sacada: desejo e satisfação não são partes num processo de simples causa e consequência. Por uma série de fatores complexos e não exatamente apropriados em uma crítica de cinema, a satisfação é sempre insatisfatória. Como isso é possível? Não há como experimentar o prazer total. Toda e qualquer descarga de pulsões é apenas parcial, levando o indivíduo a sempre buscar mais. Pensando nisso, é mais do que apropriado Fellini ter escolhido um garoto para ser o centro — ainda que não um protagonista padrão — de “Amarcord”. A juventude se caracteriza pela ingenuidade nas diversas primeiras vezes de suas vidas, o estar longe de conhecer o mundo e descobrí-lo aos poucos. O protagonista então passa muito de seu tempo sonhando alto; querendo ser grande, desejando ser homem através de uma mulher. Mas tudo que parecia bem concreto em sua mente não se mostra assim no mundo real. Gradisca, a mulher mais bonita da cidade, é desejada por todos os homens, sem exceção. Ainda assim, é vista reclamando por não ter um amor de verdade. Como alguém mais madura, que viu muito mais do que um jovem, ela sabe que meias satisfações, paixões efêmeras não são o bastante.
Além da Psicologia, há outro elo unindo “Amarcord”: a trilha sonora genial de Nino Rota. Mais simples em essência, mas não menos eficiente por isso, a trilha opera na esfera elementar de dar ritmo e vida às imagens. O estilo provinciano de Rota localiza o espectador geograficamente e o coloca no clima descontraído da obra; entretém e traz um tom de tradição usando uma diversidade de instrumentos que remetem à arquetípica imagem que se tem da Itália: ânimos altos o tempo todo, seja em festas ou em brigas.
Claro que tudo isso que falo pode ser uma grande besteira, uma vez que o longa não expõe nenhuma dessas interpretações explicitamente. Apenas vejo uma margem razoável para que se possa interpretar dessa forma em vez de uma coleção de sequências aleatórias. Esse processo complexo de querer, conseguir e não ter o desejo em sua totalidade é a alma de “Amarcord”, o esqueleto de um filme aparentemente sem trama, sem protagonista e sem sentido. Fellini mostra nas entrelinhas que há muito sentido no que faz, mais do que aparenta no começo, pelo menos.