As aparências enganam. Todos já ouviram isso, sem dúvida alguma. No cinema, isto é especialmente verdade; não porque cineastas e estúdios enganam seus espectadores com imagens contraditórias à maneira como pretendem usá-las, mas porque a parte realmente importante das histórias não está na camada mais exterior. Claro, bons filmes usam essa camada como meio de transmitir seus significados, os medíocres se limitam a ela e os ruins mal conseguem dizer algo relevante. Com Sophie Fiennes na direção e Slavoj Zizek como estrela principal, este documentário procura expor e desenvolver sobre o funcionamento de ideologias hoje e ontem, usando exemplos do melhor que o cinema tem a oferecer para ilustrar tudo isso melhor.
Basicamente, este não é um documentário comum. Slavoj Zizek — psicanalista lacaniano, filósofo e acadêmico marxista — passa o tempo todo falando sobre o que é ideologia e como diabos essa coisa tão comum e mal compreendida se desenvolve no cotidiano. Pode até parecer a receita para uma palestra das mais chatas, com um filósofo de sotaque forte expondo suas idéias bizarras para o mundo, mas não, este longa executa tudo isso num formato relativamente moderno, longe do palco, do auditório e do Power Point. Zizek de fato fala do começo ao fim, mas seu discurso e a direção de Sophie Fiennes tornam o longa mais que algumas palavras bem ditas.
Para mim, o segredo de um bom discurso — e consequentemente uma boa didática — é saber quebrar um conceito complexo com exemplos ou metáforas boas, ou ao menos ilustrativas, caso não seja possível dar um exemplo muito bom. Francamente, se uma pessoa chegou em “The Pervert’s Guide to Ideology”, um filme não muito conhecido, é provável que ela conheça um tanto de cinema, ainda mais quando o longa anterior a este, “The Pervert’s Guide to Cinema”, foca tanto na sétima arte. Logo, usar o cinema como metáfora da vida torna-se a escolha mais lógica; funcionando bem para apaixonados por cinema ou não, pois os exemplos usados, embora por vezes desconhecidos, são contextualizados para que o espectador entenda como Zizek quer usá-los.
Um desses é “They Live”, de John Carpenter, filme que conta a história de um andarilho que, após encontrar um par de óculos bizarros, passa a ver a verdade das coisas. Anúncios publicitários e propagandas mostram seu real significado, um comunicado do governo perde o charme das imagens e das cores e mostra apenas “OBEY” em preto e branco. Claro, o longa de Carpenter não usou a mesma idéia de Zizek por coincidência, o que o óculos realmente revela é que a Terra foi dominada por alienígenas disfarçados como pessoas normais. Não precisa ter visto “They Live” para entender o ponto apresentado, tudo é bem explicado. Outros exemplos, por outro lado, se mostram mais claros por tratarem do exemplo mais diretamente. Indo além da definição de ideologia como conceito, o apresentador mostra também como o conceito é usado em grandes movimentos políticos, como o Nazismo e o Stalinismo; melhor ainda, ele explica como quebrar a lógica aparentemente tão bem embrulhada de tais movimentos. Neste caso, os exemplos já são mais próximos com a teoria: para o nazismo, “O Triunfo da Vontade” de Leni Riefenstahl é usado; enquanto para o Stalinismo “The Fall of Berlin” é o escolhido.
O mais legal de tudo isso é que realmente inovam a maneira de apresentar uma palestra quando Slavoj Zizek em pessoa é colocado nos sets reconstruídos dos filmes que cita. Dentre eles, pode-se citar o barco de “Tubarão”, o apartamento de Travis Bickle em “Taxi Driver” e até mesmo o banheiro do quartel de “Full Metal Jacket”. Os cenários, montados exatamente como nos filmes, vão além de fazer homenagem a grandes obras por criar uma nova esfera para o poder metafórico de Zizek, que, no fundo, nem precisaria delas para entreter o espectador com conteúdo puro, ele facilmente tem conhecimento e fluência nas palavras para evitar que o tédio tome conta. De qualquer forma, ver essa personalidade singular e sua figura nada charmosa no mesmo cenário onde grandes estrelas pisaram torna tudo mais digerível, usando o humor daquela situação absurda como apoio. Nada de termos em latim, palavras desnecessariamente complicadas, conceitos que poucos acadêmicos de Filosofia conhecem ou um tom de voz incômodo. o apresentador apenas explica o que sabe de melhor com palavras bem escolhidas, um sotaque forte e uma frequente incapacidade de olhar para a câmera.
Por que fazemos o que fazemos? Sabendo o porquê dessas atitudes, porque continuamos nesse caminho? Qual a real verdade por trás de movimentos genocidas? Todas são perguntas que já devem ter atormentado a pessoa alheia e que, vez após vez, ficaram sem resposta. Existem livros sobre tudo e sobre nada, mas poucos que dão um ponto de vista tão rápido, conciso e direto como “The Pervert’s Guide to Ideology”.