De tempos em tempos é bom voltar a um cineasta que não decepciona, um que nem Billy Wilder, candidato mais do que válido para este posto. Além da óbvia qualidade de seu trabalho, o diretor possui uma certa característica que puxa o espectador para dentro da obra, algo que cria uma imersão de caráter catártico mesmo se não houver semelhança entre ficção e realidade. É difícil explicar, mas não há como ver este longa, no qual o álcool está sempre presente, e não sentir vontade de beber um drink que seja apenas para se sentir mais conectado com a atmosfera de um grande filme.
Contextualizada em um ambiente casual, a história apresenta ao espectador três personagens conversando em um apartamento: Don Birman (Ray Milland), um escritor desiludido e alcoólatra sem futuro; sua apaixonada namorada Helen St. James (Jane Wyman), sempre na luta contra o vício de seu parceiro; e seu irmão Wick Birnan, que pretende levá-lo numa viagem para acalmar os nervos. Não demora para Don dar um jeito de se livrar de seus captores e quebrar seu período de sobriedade, entrando em uma sequência de bebedeira que pode muito bem ser sua última.
Mesmo não sendo o melhor trabalho do diretor, a conexão intensa entre espectador e conteúdo permanece. Talvez isso se dê por conta da história se levar tão a sério e ainda dar conta de não parecer ridícula, apesar de alguns traços da Hollywood clássica que não envelheceram tão bem. Sendo assim, é interessante acompanhar o paralelo que se estabelece entre a progressão do protagonista e aquela do próprio roteiro. Ambos são, de certa forma, lineares, mas o segundo caso é especialmente curioso por conta da história ser conduzida de forma que ela poderia seguir em várias direções a qualquer instante. O trajeto do protagonista claramente vai ao pior, parece não haver salvação, porém em nenhum momento existe qualquer tipo de certeza; a luta é apresentada de modo que a vitória ou a derrota nunca sejam uma certeza. Tal qualidade não vem como surpresa, uma vez que a dupla de roteiristas aqui, composta por Billy Wilder e Charles Brackett, é a mesma que entregaria “Sunset Blvd.” cinco anos mais tarde.
Algo parecido aparece também em “The Apartment“. Nele, a história é escrita de tal forma que em qualquer momento ela poderia passar de Comédia para um Noir, mistura essa que ficou conhecida como as comédias negras do cineasta. Por outro lado, um aspecto que também possui sua dualidade, embora não tão positiva, é a atuação do elenco principal. Não que Ray Milland de alguma forma deixe a desejar por incompetência, mas, como dito, as marcas da Hollywood clássica mostram-se negativamente quando a mise-en-scène possui um caráter extremamente teatral. O enquadramento central com os atores todos de frente para a câmera e a atuação exagerada forçam o melodrama demais em certos momentos, o que se torna incômodo quando vemos a obra de uma maneira mais geral. O longa está mais para um drama de caráter depressivo em vez de um drama emocional, ao contrário da impressão que estes momentos tentam forçar. O roteiro define claramente que a entonação derrotista do Noir é a regra aqui, partir para longe disso sem um processo orgânico resulta apenas em variações forçadas.
Imagino que estas qualidades negativas não devam ser atribuídas a uma possível inexperiência de Wilder como diretor, mas sim ao sistema de estúdios da época e sua hegemonia total sobre a produção da obra. O próprio “Double Indemnity” não possui os deslizes vistos aqui, então o cineasta provavelmente não é a fonte dos defeitos. O problema é que tais momentos exalam toda a artificialidade que vem com o formato melodramático imposto, ao mesmo tempo que o resto do conteúdo é tratado com seriedade acima de tudo. Ver o personagem caindo cada vez mais fundo é difícil por não parecer haver fim para seu sofrimento, mas quando ele é visto como um pai histérico, direto de uma novela, bravo com o filho que fumou escondido, é difícil digerir isso como parte da mesma obra. De um lado temos a escrita impetuosa e quase sádica, de outro uma suavidade totalmente desnecessária. Eventualmente, isso me levou a considerar acusar os estúdios de influenciar o final do filme. Por sorte, nem precisei me arriscar, Hollywood realmente alterou o final da obra original de forma que ele ficasse mais agradável do que a visão original do autor.
Este é um ótimo filme, sem dúvida alguma, porém não consigo deixar de pensar que ele seria muito mais se as rédeas fossem soltas; também não tenho dúvida que Wilder e Brackett entregariam sua acidez com ainda mais vigor, o que nunca é demais. Mesmo com as ocasionais intervenções dos estúdios em cima da obra final, que tentam suavizar algo que é áspero por natureza, esse é um longa-metragem que não passa longe do alto nível das obras de Billy Wilder.