Não sei dizer se esta moda está em alta no momento, mas não há como negar que ela está presente. O laranja e o azul voltam à ativa em mais um dos filmes indicados ao Oscar, terríveis como nunca. O que vemos aqui não é nem de longe tão absurdo quanto o que é mostrado em “The Theory of Everything“, mas ainda assim é bem notável. Claramente vista em várias ocasiões, mais uma vez se tem outra demonstração de uma fotografia amadora em um grande filme.
Considerando a importância de sua pessoa e de seus feitos, a vida de Martin Luther King (David Oyelowo) foi pouquíssima representada nos cinemas. Cerca de nove filmes foram feitos, a maioria sendo pequenas produções como documentários e animações educativas. É no mínimo curioso ver como uma persona tão respeitada como King não teve tanto destaque nas telonas, enquanto outras figuras como Malcolm X tiveram produções milionárias feitas sobre suas vidas. Quase 40 anos após sua morte, Ava DuVernay revisita os eventos da estadia de King na cidade de Selma, Alabama. Ativista político desde anos antes dos eventos do longa, King tem sua vida mostrada desde seu prêmio Nobel da Paz em 1964 até os acontecimentos que culminariam no direito pleno de votar à população negra.
Por tratar de assuntos relativamente delicados, como a vida das minorias e o racismo, uma pessoa poderia querer rotular “Selma” como uma obra pretensiosa e desproporcional. Para a infelicidade de tais pessoas, este longa-metragem tem uma de suas maiores qualidades baseadas na moderação de como tudo é mostrado. Não há vilões e vítimas completamente definidos, Martin Luther King não é endeusado e o homem branco não é tratado como o mal encarnado. Ambos os lados demonstram ser seres humanos, até mesmo King é exibido como um ser imperfeito apesar de suas inúmeras conquistas. Os eventos falam por si, os horrores da segregação estão ali em todas as cores e o lado opressor fica consequentemente visível. Entretanto, DuVernay não abusa da situação para tornar as sequências excessivamente dramáticas, reforçando sua qualidade de manter o equilíbrio independente do evento em questão.
Se por um lado a representação dos eventos é bem equilibrada, a maneira como os personagens são abordados é um tanto rasa. Contando com um elenco relativamente extenso, de cerca de 5 personagens centrais, este longa-metragem falha em explorar mais além quem todas aquelas pessoas realmente são. Não sabemos quem foi Martin Luther King Jr. de verdade, alguns poucos comentários sobre dificuldade da ativista fazem pouquíssimo pelo desenvolvimento de sua personalidade. Seus companheiros conseguem ser ainda piores neste quesito, no sentido do espectador sequer saber o nome da maioria no fim do longa. Uma pequenina fatia chega a receber um pouco mais de atenção, mas mesmo esta recebe um tratamento ainda mais raso que a vista em King. Não bastasse isso, a atuação de David Oyelowo não consegue se manter sólida o tempo todo. Sua interpretação em momentos é bem forte e representa satisfatoriamente King como uma figura de importância, o porém é que sua perícia como ator não se mantém constante. Dizer que o poder do ativista está em suas palavras é quase um pleonasmo, seus discursos moveram milhares de pessoas à luta. Sendo os discursos os momentos em que o ator está mais exposto, não notar seus erros se torna difícil demais para não ser feito. Embora consiga manter um sotaque afro-americano em momentos calmos, o ator acaba perdendo a linha nas horas de euforia. Nestas ocasiões seu sotaque explicitamente africano vem à tona, estragando um pouco a magia dos discursos de King. Se ao menos tivessem omitido as gravações reais do ativista, talvez a disparidade ficasse mais sutil.
Há também um elemento pequeno, mas que se mostrou presente o bastante para gerar desconforto. Ao longo do filme inteiro colocam textos sobrepondo as cenas, contendo breves descrições dos acontecimentos em um vocabulário oficial. Mesmo que a grafia e a escrita denunciem o monitoramento da vida de King por parte do Governo, a utilidade de tudo isso para o filme permanece intangível. Em nenhum momento o filme explora essa invasão de privacidade da vida do ativista tão a fundo para justificar os textos, ainda mais por parte do governo. A falta de profundidade neste desenvolvimento, entre Martin Luther King Jr. e o governo americano, apenas dá um ar desnecessário de pretensão à obra. Se o filme todo se estrutura na moderação dos eventos apresentados, qual a necessidade de tentar justificar tudo como oficial e verídico através destes textos?
Apresentando um ponto de vista intrigante sobre a jornada de Martin Luther King na cidade de Selma, este longa-metragem se destaca por mostrar os eventos de maneira bem equilibrada, sem exagerar no drama dos terrores da segregação. A obra de Ava DuVernay peca no desenvolvimento de seus personagens, muitos que passam quase despercebidos pelo filme todo. Se não dar atenção a alguns personagens secundários pode até ser aceitável, não explorar a personalidade do protagonista a fundo se mostra como algo quase criminoso deste longa-metragem.