Antes de comentar sobre o filme em si, é justo começar com alguns fatos sobre o curioso título escolhido por Fellini. Nomeado”La bella confusione” em seu período de produção, o longa-metragem foi renomeado “8½” para seu lançamento, nome que não tem nenhuma ligação com o enredo em si. Até o lançamento desta obra, Federico Fellini havia dirigido 6 longas-metragens, co-dirigido um longa com Alberto Lattuada, e dirigido dois segmentos de duas outras obras em colaboração com outros diretores. Contabilizando 6 longas-metragens antes desta obra analisada e o “8½” em si, temos 7 “pontos” somados; somando mais ½ “ponto” por cada um dos segmentos e pela co-direção temos os 8½.
Embora não seja completamente apropriado classificar esta obra como um filme-passeio, é possível traçar uma comparação com os filmes desse gênero, talvez considerar este como um dos precursores de tais obras. Relembrando, filme-passeio é aquele filme onde não há uma trama realmente definida, há um embrião de história e um foco nos personagens e relações em vez dos eventos em si. A história de Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), um diretor de cinema, é contada. Após um filme de grande sucesso, Anselmi se vê pressionado o tempo todo por gente que trabalhou com ele previamente, sem um momento para descansar as idéias. Agarrando todo e qualquer momento de introspecção, o diretor passa a fantasiar sobre momentos importantes de seu passado enquanto sofre de um bloqueio criativo e da pressão exercida pelo ambiente.
Reitero meu ponto, mencionado em outra análise sobre uma das qualidades mais preciosas de um filme, quando digo que autenticidade é uma das características que mais somam para o sucesso de uma obra cinematográfica. Ao mesmo tempo que o enredo se trata da luta de um cineasta contra seu bloqueio criativo, Fellini retrata a si mesmo em sua própria obra por meio de um outro indivíduo. Falta de idéias e períodos de baixa produção criativa são condições relativamente comuns à artistas, as pequenas faíscas que costumam inflamar em incêndios criativos permanecem faíscas e no máximo produzem insignificantes flamas. Tornar a falta de criatividade em uma das fontes principais de material criativo pode parecer uma idéia duvidosa, mas é apenas uma das peças da genialidade dessa obra do cinema italiano.
Transformar a inexistência de material em uma das fundações mais elementares de um longa-metragem por si é uma tarefa ambiciosa, e talvez um pouco pretensiosa sob alguns pontos de vista. O que dá vida à essas idéias é o uso deste filme como a janela da alma de Federico Fellini: uma colossal fonte de lembranças, paixões, obsessões, decepções e conflitos. Para representar a imensidão de abstrações contidas na mente do cineasta italiano, são elaboradas cenas ilustríssimas. Recheadas da própria criatividade que o protagonista carece, tais sequências são complementadas por uma estética sublime: uma ópera de sombras, luzes, e tons de cinza com Federico Fellini como Maestro. O único ponto do filme inteiro que realmente tenho reclamação está em uma das sequências de sonho, onde o protagonista tem um insight grandioso sobre sua vida. Se por um lado o conteúdo do insight é incrível e perfeitamente escrito, em contrapartida nunca fica muito claro como ou porquê ele surge, algo de tanta importância poderia ao menos ser melhor introduzido.
Outra parte da genialidade desta obra italiana está na naturalidade da atuação de Marcelo Mastroianni como Guido Anselmi, ou mais apropriadamente Fellini em pessoa. Como dito anteriormente, a autenticidade faz toda a diferença em um filme, e ainda mais quando ela é notável em mais de um aspecto da obra em questão. Além da temática em si, Mastroianni possui uma ar muito orgânico nesse papel, como se ele e o personagem se pertencessem além do rolo de filme. Exibindo-se como um indivíduo explicitamente introspectivo, o ator consegue entrar no personagem ao passar a impressão que o Guido está eternamente soterrado por seus pensamentos; atacado pelas incansáveis fantasias de seu passado em sua mente e pelas inconveniências dos bípedes à sua volta, como Schopenhauer classificaria tais seres humanos.
Executando sua parte tão bem quanto poderia, Mastroianni brilha por si enquanto a magia de Fellini faz o resto. Talvez tenha gostado tanto deste filme por ter me identificado profundamente com o protagonista, que por tabela reflete a mente magnífica do próprio cineasta. Melhor do que suprir este filme com conteúdo refinadíssimo, “8½” prova que a janela definitiva para a alma de Fellini não são seus olhos, mas sim suas obras cinematográficas.