“Some Like It Hot” é o penúltimo filme da maratona de Clássicos do Cinemark, precedendo “Lawrence da Arábia“, que será exibido na próxima semana. Tomando uma direção bem diferente do ríspido “Double Indemnity“, Billy Wilder junta-se a Marilyn Monroe e a dupla Jack Lemmon e Tony Curtis nesta obra. Embora não seja um de seus primeiros flertes com a Comédia, Wilder traz aqui uma conquista comparável aos seus trabalhos mais sérios, inclusive usando elementos deles estrategicamente para estabelecer uma identidade ímpar, quando talvez seria muito mais fácil se entregar à farsa da premissa absurda em todos os sentidos.
Nos anos da proibição, dois músicos sofrem para arranjar trabalho. As oportunidades são escassas e as poucas que estão disponíveis sempre acabam dando errado por um motivo ou outro. Mas uma interessante vaga aparece oferecendo bom pagamento e uma viagem pra Flórida com apenas um detalhe: os músicos têm de ser mulheres. Isso não os impede de seguir em frente, no entanto. A dupla arranja um par de vestidos e um péssimo falsete e aceita a vaga. No entanto, a presença constante de moças de todos os estilos e para todos os gostos pode se mostrar um pequeno detalhe para dois rapazes que tentam manter seus disfarces e seus empregos, especialmente a amável Sugar Kane Kowalczyk (Marilyn Monroe). O que pode parecer uma versão da década de 50 de “As Branquelas” se mostra como um precursor respeitável, mais que isso até, uma comédia quintessencial do cinema americano.
Como a maioria dos filmes de comédia, é preciso olhar para o outro lado frequentemente para poder engolir alguns detalhes. Caso contrário, alguns trechos podem ser incompreendidos ou tratados como mal executados. “Some Like it Hot” é um exemplo bem apropriado à essa idéia porque sua premissa é prepóstera ao extremo e pede do espectador uma dose respeitável de suspensão de descrença. Não é porque o figurino e a maquiagem são mal concebidos a ponto de ser necessário perdoar como um defeito. Fica bem claro que a intenção de “Some Like it Hot” nunca foi criar uma ilusão indistinguível, afinal de contas nem Tony Curtis, nem Jack Lemmon podem ser considerados andróginos ou afeminados. Os disfarces são pouco realistas e mais buscam ser uma palhaçada escrachada, algo para fazer os protagonistas parecerem mais engraçados. O resto do elenco engolem os disfarces, então por que não acreditar também? Mesmo não enganando, as fantasias estão longe de ser mal feitas em termos de design e costura e, bem, seriam bonitas se fossem vestidas por uma mulher; além de que há todo o resto dos coadjuvantes usando roupas adequadamente, dentre os quais Marilyn Monroe usando os vestidos que imortalizaram sua imagem . Aplicação estranha ou não da idéia de figurino, foi o bastante para render um Oscar no ano seguinte.
Confesso que apesar de ter ouvido falar muito de Marilyn Monroe, esse é o primeiro filme que vejo da atriz. Pelo ícone sexual que a atriz ainda é hoje, esperava sua atuação um pouco diferente. A interpretação não é ruim porque eu esperava outra coisa, é claro, mas imaginava que ela possuísse uma postura mais femme fatale em vez do comportamento de menina ingênua. De qualquer forma, foi uma surpresa nada menos que agradável ver como essa imagem diferente funciona sem se colocar no caminho da sensualidade, sendo até mesmo uma leve amenização da sexualização exacerbada vista na publicidade da atriz. Não só isso, pois a ingenuidade vai alegre de mãos dadas com a premissa de dois homens infiltrados num bando de moças. Há pelo menos uma desculpa de que a moça é tonga demais para notar a farsa.
Apesar de Monroe ser tratada como a principal estrela de “Some Like it Hot”, ela tem bem menos tempo de tela que a dupla Curtis e Lemmon, os verdadeiros astros do longa metragem. Ela tem certa participação importante e é um dos grandes obstáculos da trama, já que um dos rapazes disfarçados se apaixona por ela. Sempre tramando algum plano mirabolante e inusitado para conseguir o que querem, a dupla é de longe a maior fonte de risadas do filme todo porque as atuações e as situações conversam na linguagem da insanidade tão elementar para tudo funcionar. Seja tentando conquistar Sugar, a personagem de Monroe, ou tentando fugir dos charmes de Osgood (Joe E. Brown), um milionário doido por um dos travestidos, a dupla está o tempo todo arrancando sorrisos e fazendo deste longa-metragem uma experiência agradabilíssima.
Característica típica de Billy Wilder, a mudança de clima de uma hora para outra está presente novamente; fazendo o que começa um tanto obscuro, com uma perseguição policial, logo ficar bem mais leve quando o diálogo introduz piada atrás de piada sem fazê-las parecer pretensiosas ou sem graça. Normalmente as chacotas são feitas sutilmente, são mais do tipo que fazem esboçar diversos sorrisos do que as que faz gargalhar com força, ao mesmo tempo que a grande piada, por assim dizer, se dá pelo simples absurdo da situação. Tudo isso existe apenas porque Curtis e Lemmon possuem uma sensibilidade para o humor enorme e abraçam o ridículo com prazer, sem medo de passar vergonha alguma. O melhor de tudo é que o falsete tosco dos atores não engana ninguém e nem isso impede ambos de entregarem flexões complexas na voz demonstrando emoção. Nasce um efeito inesperado de ver uma boa atuação através mesmo de um filtro ridículo. Somando isso a um roteiro de qualidade, recheado do melhor que os diálogos de Wilder têm para mostrar, encontra-se uma obra que caminha no melhor da loucura e da coincidência cômica, elementos clássicos da comédia que sempre funcionam em mãos hábeis.
Mesmo sendo uma Comédia em todos seus aspectos, “Some Like it Hot” contém uma série de cenas pesadas dignas de um filme policial ou um Noir. Remanescentes dos trabalhos mais sórdidos de Wilder, tais cenas se sobressaem e até impressionam por parecer momentaneamente que não pertencem ali, ainda que longe de chegarem a estragar o clima leve da obra. Mais do que apenas um reflexo do passado do diretor, tais cenas mostram o cuidado com cada detalhe, fidelidade ao conteúdo das imagens, não à convenções de gênero; se um assassinato ou um massacre é mostrado, não sai confete das metralhadoras e geléia das vítimas. “Some Like it Hot” é parte da consolidação de uma tendência do diretor de introduzir seriedade numa mesma obra com tantas bobagens. Quase como se tivesse percebido a genialidade do conceito, Wilder criou uma obra em volta do conceito já no próximo ano com “The Apartment“. Seja para ver boas atuações, uma história com riqueza de tom ou uma chacota de qualidade, “Some Like It Hot” é uma excelente comédia e dificilmente entregará menos que duas horas bem gastas da vida do espectador.