Há uns meses atrás, terminei de assistir todas as cinco temporadas de “The Wire” após um amigo me recomendá-la. Decidi dar uma chance para a série, fui assistir apenas sabendo de sua fama de ser uma das melhores da história, não procurei saber muito sobre os específicos. Depois de começar a assistir fui procurar saber um pouco mais sobre a mesma. Devo dizer que é um daqueles trabalhos que têm uma sinopse sem sal, mas que apesar disso entrega para o espectador muito mais do que o esperado. Retirado do IMDb (Internet Movie Database), a sinopse do seriado diz: “Cenário das drogas de Baltimore, visto através dos olhos de traficantes e das autoridades”. Com isso em mente, quantas obras que trabalham esse tipo de conflito existem por aí? “Miami Vice”, “Tropa de Elite”, “Máquina Mortífera”, “Dirty Harry”… Os exemplos são muitos, mas o que faz “The Wire” se destacar dentre tantos trabalhos policiais por aí é justamente não ter nada a ver com nenhuma dessas obras citadas.
Quando se fala em filmes ou seriados policiais, muitas coisas nos vêm à mente: tiros voando por todo o lado, explosões fantásticas, criminosos sendo baleados, cenas de ação excitantes, personagens durões… Para quem esperava isso, sinto dizer que “The Wire” não tem nada disso. Porém ao mesmo tempo que não possui esses elementos comuns do gênero, ele continua sendo um seriado policial e dos bons ainda por cima. A série apresenta uma visão realista, áspera e até de certa de forma pessimista da cidade de Baltimore, Maryland. Mostrando não só o ponto de vista dos policiais, o seriado foca também no outro lado da lei. Exibindo a realidade dos bandidos e degenerados enquanto são investigados pela polícia. Não só os personagens desses círculos recebem um foco especial mas também outros personagens como políticos, trabalhadores do porto, jornalistas, e até mesmo crianças. Com o passar das temporadas, o escopo de “The Wire” vai aumentando, indo de seu foco inicial a algo muito maior e mais grandioso.
A maneira como todos esses elementos se ligam é no mínimo fantástica, todos estes personagens são ligados ao crime de maneiras diferentes. Pode-se dizer que, numa visão geral de toda a trama, nota-se uma escala em como círculos diferentes de uma mesma sociedade influenciam outros círculos e são influenciados por eles ao mesmo tempo. Políticos tomam decisões dependendo do dinheiro públicos, devendo distribuir a receita entre diversos setores e sabendo que algum deles vai sair em desvantagem em prol de outro; a polícia dependente do dinheiro recebido pela administração pública tem resultados cobrados, ao mesmo tempo que não recebe o incentivo fiscal necessário; criminosos perpetuam suas atividades frente aos esforços ineficazes da polícia e acabam por influenciar as gerações mais novas; estas gerações se vêem cada vez mais atraídas pelo mundo do crime, frente a ineficiência do sistema de ensino público e como ele lida com sua realidade; e em torno de tudo isso há a imprensa, reportando e às vezes distorcendo os fatos que são comunicados ao público, o fornecedor principal de receita ao governo.
Dados esses fatos, pode-se dizer que o repertório de personagens de “The Wire” é extenso. Os personagens são todos muito bem trabalhados e variados, uma vez que pertencem à esferas sociais diferentes. A maneira como são manuseados e desenvolvidos é majestosa, diversos círculos de suas vidas são representados, tornando tridimensional até mesmo o personagem mais insignificante. Não só o aspecto investigativo é explorado, abordando mais da vida pessoal de cada um do que o enredo necessita. Cada indivíduo tem não só o seu papel na trama mas também problemas, atividades do cotidiano, hobbies, relações interpessoais, brigas, amores, assim como qualquer outro ser humano. Isso pode ser dito literalmente, uma vez que vários atores do seriado são cidadãos, policiais, e até ex-criminosos de Baltimore, o que dá um tom curioso de autenticidade à obra. Essa mistura de elementos e como eles se desenvolvem em paralelo com a trama principal da série é muito intrigante, pois são aplicados perfeitamente, sem encher linguiça, nem desviando-se do foco principal. Essa dinâmica cria uma caracterização bem fidedigna, pois assim como na vida real, não nos é dado tempo para pensar, tudo é despejado de uma vez só.
Somados a grande variedade de personagens está a sólida trama, que é extremamente bem executada e mantém um alto padrão de competência do começo ao fim. Diferente de outros seriados de crime ou policiais, que apresentam um caso novo e o resolvem no mesmo episódio, “The Wire” exibe um caso apenas e o progresso em cima dele é mostrado ao longo de uma temporada inteira. Sem se tornar maçante, o trajeto da polícia é apresentado de maneira complexa e instigante. De forma que o próximo passo não seja óbvio o bastante para que o espectador descubra antes do personagem, nem tão obscuro que pareça um deus ex machina. Não só as temporadas compõem tramas fechadas de 10-13 horas, mas as temporadas em conjunto formam uma grande trama que perdura pelas cinco temporadas.
Apesar de todas as temporadas juntas comporem uma história só, cada temporada tem seu próprio arco de história que tem como duração a temporada em questão. Ainda assim, personagens envolvidos e introduzidos nos arcos de cada temporada ganham participação nas temporadas seguintes. Envolvendo-os na trama principal e no contexto geral da série mesmo que o arco em que foram introduzidos tenha acabado. A primeira temporada introduz os personagens e a trama base, focando nos personagens policiais principais e nos criminosos que estão sendo investigados por eles; já a segunda muda completamente o ambiente quando o foco passa para uma investigação de assassinatos nas docas, que envolve o Sindicato dos Portuários e suas ligações com o crime; a terceira resgata personagens da primeira temporada e traz um novo foco em cima da política e do processo eleitoral; a quarta temporada foca na administração pública e na educação pública; já a quinta mantém temas trabalhados na terceira e quarta temporadas enquanto foca na imprensa e no efeito da mídia sobre assuntos públicos. Mesmo com temas claramente definidos entre temporadas, os eventos retratados ecoam em temporadas seguintes e são constantemente referenciados no decorrer delas.
David Simon, o criador da série, foi jornalista policial para o jornal “Baltimore Sun” por doze anos. Em meados de 1991 Simon escreve seu primeiro livro “Homicide: A Year on the Killing Streets”, baseado em suas experiências enquanto acompanhou o Departamento de Polícia de Baltimore durante um ano. O livro, que mais tarde foi usado como base para outro seriado “Homicide: Life on the Street”, descreve suas experiências e o procedimento policial do Departamento. Tornando todo o contexto policial e midiático mais familiar e transmitido de forma mais autêntica para a TV. Como nas palavras de Simon sobre seu livro, tive a mesma impressão ao assistir “The Wire”: “Senti que ‘Homicide: A Year on the Killing Streets’ não foi jornalismo tradicional no sentido de estar vindo de um ponto de vista artificialmente onisciente e objetivo. Ele está imerso em sua respectiva cultura, que ele cobre de uma maneira que o jornalismo tradicional normalmente não o faz.” Este seriado transmite exatamente este sentimento, pois a realidade é retratada como ela é, sem filtros, amenizações, nem imitações. Não há romantização dos eventos, ninguém é estrelinha do seriado, nem é escolhido por ser bonito frente às câmeras. O conteúdo pode ser sujo e repugnante, mas é justamente impressionante por sua falta de freios na hora de apresentar os fatos.
“The Wire” também aborda diversas questões sociais e o faz com uma postura crítica e reflexiva. Nos aspectos abordados pode-se ver corrupção, política, educação pública, imprensa e mídia, administração pública, ética profissional, e moralidade, assim como são desenvolvidas na sociedade. Mostrando-os de tal maneira que a moralidade e a corrupção exercidas sejam exploradas de maneiras diferentes por cada sujeito em sua esfera social. Tudo é trabalhado de maneira tão meticulosa e sólida, que toda a tecnicalidade do procedimento policial e o comentário social não parecem documentários ou trabalhos acadêmicos; assim como toda a parte que explora a vida pessoal dos personagens não se parece com novela. Minha única crítica seria em cima da decisão de estética infeliz do criador, que decidiu gravar o seriado todo em 4:3 (Formato TV tubo, ou tela quadrada) e em baixa resolução. O seriado poderia ter sido gravado tranquilamente em 16:9 (Widescreen) que transmitiria a mesma impressão de autenticidade mostrada. Apesar da escolha, o formato não estraga de forma alguma a experiência. Outro fato infeliz é a pouca divulgação por parte da HBO. Apesar de ser um seriado extremamente bem conceituado e conhecido apenas por sua qualidade finíssima, ele não é popular e muitas pessoas nunca ouviram falar do mesmo, o que dificulta e muito uma remasterização do seriado para formatos de resolução como o Blu Ray. Felizmente, a emissora voltou atrás e anunciou o lançamento do seriado em 16:9 e em Alta Definição, finalmente tratando esta jóia com o carinho e respeito que merece.
No final das contas, tudo soma para uma experiência muito completa. Indo dos conflitos de poder de um político, para os problemas conjugais de um casal, para a realidade de um viciado em drogas, e muito além. Sem sombra de dúvida o seriado de TV mais completo que já tive o prazer de assistir, ele também ocupa o primeiro lugar em minha lista de melhores séries de TV. Certamente é uma jóia dentre os trabalhos do gênero e da história da televisão em si. Se você procura um seriado que mostre mais que simples entretenimento você certamente encontrará em “The Wire”.
1 comment
parabens pelo texto
gosto muito desta série , e vc retratou muito bem todas as temporadas
abraços