Nos meus tempos de escola, Teatro era uma matéria obrigatória no currículo. Não fazia muito sentido porque em alguns anos era possível escolher entre várias opções — Futsal ou Natação, Dança ou Judô etc — e muitos nem tinham interesse em fazer a aula. Eu era um destes. Se não fosse tão burro, talvez tivesse aproveitado aquele momento para desenvolver o interesse em Teatro e Cinema que tenho hoje, mas preferi responder a chamada e fazer corpo mole. “All That Jazz” é um filme que me lembra muito daquele tempo. Principalmente porque o protagonista e sua arte eram como meu professor e suas aulas: os ensaios de números teatrais, roupas justas, a espera, a repetição e o medo da frustração. Em parte, é uma viagem de nostalgia. O resto da experiência é uma amplificação imensurável de tudo que aconteceu e o que se desejava nas aulas: corpos em movimento fluído e ao som de música como resultado de esforço e dedicação.
Não é preciso perguntar muito por aí para descobrir quão difícil é fazer um filme. Bom ou ruim, todos dão trabalho. Joe Gideon (Roy Scheider) está quebrando a cabeça na edição de seu mais novo longa-metragem e coreografando uma peça na Broadway ao mesmo tempo. E lidando com um bloqueio criativo. E tendo de enfrentar uma tríade de mulheres composta por filha, ex-mulher e atual namorada. Ele deve ser um bom pai para a primeira, parecer um bom pai para a segunda e dar atenção para a terceira enquanto se diverte com outras mulheres com quem não se importa. Tudo isso nos intervalos de noites mal dormidas, cigarros em sequência e uma dose diária de anfetaminas.
Se você fosse contar sua própria história de vida, como faria? Senti que “All That Jazz” propõe exatamente esta pergunta ao apresentar um pedaço da vida de Bob Fosse de forma inconfundivelmente característica e pessoal. É o tipo de narrativa que não deixa uma dúvida sobre a possibilidade de ser contada de outra maneira. Não conheci Fosse ou pesquisei sobre sua personalidade e, ainda assim, tive uma impressão muito forte de estar assistindo a uma obra que comunica quem ele é. Em grande parte, porque Roy Scheider é sublima em refletir a abordagem descontraída dos fatos com sua própria interpretação despreocupada e sarcástica, que faz tudo se encaixar naturalmente e torna fácil acreditar na realidade apresentada aqui.
Fazendo um suposição grosseira, seria como contar a história de vida de Luis Buñuel, um aspirante a revolucionário quando jovem, através de rodas de conversa lotadas de cigarro, bebida e devaneios em bares parisienses. Era o modo como ele vivia nos Anos 20 e, talvez, mostrar isso seja uma das maneiras mais fidedignas de ilustrá-lo como pessoa. Mas isto sou eu dizendo, quem devia saber se esta é a melhor forma ou não era o próprio Buñuel. Imagino que Fosse tenha dirigido sua própria história do jeito que achou mais apropriado. Sendo assim ou não, gerou ótimos resultados.
“All That Jazz” é um musical incomum. Diferente da grande maioria, que traz os números de cantoria e e dança como formas de avançar a história melodicamente, aqui eles servem a função maior de representar um estilo de vida. É mais ou menos como o arquétipo do cérebro de gênio: pensa notas musicais, pinceladas ou cálculos numéricos. Neste caso, a mente do artista está sempre pensando no próximo grande espetáculo entre comprimidos e tragadas de cigarro. Não dizendo que Bob Fosse é um gênio ou desmerecendo o musical clássico, mas esta abordagem é tão mais rica por transcender sua função original sem necessariamente perdê-la no meio do caminho.
Os números de dança são tão bem executados quanto em outro grande musical e ainda se encaixam de uma forma especial na história. O espetáculo é também o objeto das dores de cabeça do protagonista. Antes do show, houve noites mal dormidas — e com gente diferente. Durante foi a concretização de boas idéias almejadas há muito tempo. Depois veio o banho gelado de manhã dizendo que talvez não tenha sido bom o bastante. E, por fim, as tardes intermináveis editando um filme que Joe Gideon sabe que não presta.
A idéia principal do filme é mostrar um momento especialmente desgraçado na vida do protagonista, o que não significa que o tom da história seja dramático ou sofrido. Joe Gideon é o cara que sabe que não poderia estar bebendo e pede mais uma rodada mesmo assim. “All That Jazz” trata de um assunto sério com informalidade sem perder a força do argumento. É arte com aquela singular qualidade de parecer ter sido feita facilmente. Sempre um engano, claro. Até o texto mais fluído e fácil de ler foi produto de várias reescritas e revisões antes de se tornar a perfeição aparente. Não tenho dúvidas de que por trás de todo este processo criativo existam a consciência multi-fatorial de eventos de vida e a capacidade de expressá-los criativamente. Seria ingenuidade achar que Bob Fosse sentou-se e espontaneamente transferiu sua experiência pessoal para um criativo roteiro mais tarde dirigido por ele.
Pode até parecer complexo demais dizendo desta forma e não seria mentira, tratando da concepção do projeto. No entanto, a experiência se apresenta para o espectador sem nenhuma intenção de complicar sua cabeça. Afinal de contas, ainda trata-se de um grande show e de um dos maiores dançarinos e coreógrafos do mundo. O entretenimento não poderia ficar de fora de uma história sobre dança, música e longas pernas usando meias-calças. É usando estes elementos que Bob Fosse ilustra angústias e dificuldades do melhor jeito que conhece: dando um grande espetáculo aos envolvidos. Se é possível criar arte sobre os mais variados assuntos, por que não coreografar sofrimento? Cantar e ironizar sobre a morte? Os números de dança, apresentados sem seguir convenções de gênero, são impecavelmente encenados e igualmente bem capturados por uma direção que sabe o que mostrar e quando.
Consigo imaginar a tentação de relegar à câmera uma posição teatral, querendo capturar o cenário inteiro como se fosse um palco para não perder detalhes, sendo que é justamente assim que eles se perdem. Teatro não é a mesma coisa que Cinema e, por mais que as apresentações sejam uma composição de talentos, é apenas com as capacidades do segundo que os esforços são valorizados numa tela de cinema ou televisão. De pouco adianta expor os cenários em sua plenitude — verdadeiras obras de arte por si — quando eles são apenas uma parte da apresentação. Há tempo para a ironia e extravagância de Roy Scheider, para a precisão das dançarinas, para a concentração inabalável dos músicos por trás dos instrumentos e para suas melodias essenciais à dinâmica enérgica de “All That Jazz”. Sem tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, a edição não teria material para estabelecer o ritmo ágil presente do começo ao fim. Diferente dos cortes rápidos demais e incompreensíveis, que frequentemente atrapalham a compreensão dos fatos, há sintonia com as melodias e conteúdo para mostrar em cada trecho breve.
Pensando bem, a história contada por Bob Fosse não é muito feliz. É decadência do começo ao fim, a queda de um homem cheio de ambições e sem recursos para conquistá-las como gostaria. E para alguém como o protagonista, qualquer coisa abaixo do sucesso absoluto não é o bastante. A capacidade do diretor de transformar os piores obstáculos em entretenimento torna “All That Jazz” muito menos melancólico do que pode se esperar. Se o espectador chega com esta impressão, ela com certeza não dura muito quando a sequência de ironias, música e diversão começa.