“Jeanne Dielman” é um filme estranho. Quando meus amigos combinaram de assistir juntos logo que foi divulgada a programação do Olhar de Cinema, a descrição foi a seguinte: mais de três horas de uma mulher lavando pratos, cozinhando, tomando banho, saindo na rua para fazer compras e outras tarefas rotineiras. 201 minutos para ser mais exato. Está longe de ser o que eu chamaria de instigante, algo que me faria ter muita vontade de assistir, apesar de eu gostar muito de histórias cotidianas – a tal fatia da vida ou slice of life em inglês. Mas é claro que existe toda uma aura culta em volta da obra e, além disso, o recente primeiro lugar da lista de melhores filmes de todos os tempos da Sight and Sound. O melhor da história? Não é bem como eu descreveria.
Jeanne Dielman (Delphine Seyrig) é viúva e mãe de um filho, Sylvain (Jan Decorte). Sua rotina consiste em fazer as mesmas coisas todos os dias com quase nenhuma variação. Ela acorda cedo para preparar uma refeição, arrumar a mesa e começar seu dia em que nada acontece, nada muda e nada é muito diferente da última vez. Tudo foi feito da exata mesma forma e essa é sua vida. Ao longo de três dias, a rotina engessada de Jeanne é mostrada, evento ordinário por evento ordinário.
Obviamente, mesmo uma duração épica como essa não é o suficiente para dar conta de absolutamente tudo que acontece de fato nos três dias da vida da protagonista. Não por isso é um retrato incompleto, claro, apenas um que de início demonstra uma qualidade básica da arte do cinema que é condensar e estender o tempo. Duas horas passam rápido normalmente ou podem passar incrivelmente devagar, dependendo do que se faz. Uma partida de tênis passa rápido, ficar na fila do banco não; um filme bom passa rápido, um filme ruim não. Ou será que é isso mesmo? Nesse último aspecto já não é tão óbvio. “Jeanne Dielman” é talvez o longa-metragem mais lento que já vi na vida – sem contar bizarrices experimentais – e está longe de ser um dos piores. Na verdade, é um excelente trabalho.
E isso é irônico, de certa forma, porque falar sobre e até escrever sobre ele é tão difícil quanto talvez seja chato para quem estiver ouvindo ou lendo. Eu mesmo poderia pensar que é mais um suposto filme culto que caiu na graça dos hipsters por algum motivo e tem seu evangelho difundido no Letterboxd e nos cafés da cidade. E pensando friamente, “Jeanne Dielman” tinha tudo para ser péssimo. Tem mais de três horas, os eventos são repetitivos, não há estrutura narrativa próxima de algo tradicional, os planos são imensos, quase não há diálogo e a própria obra não faz questão de vendar nada como minimamente fora do ordinário. Só perderia para experimentos como “Sleep”, em que o namorado de Andy Warhol dorme por mais de 5 horas, que até é considerado um anti-filme por um motivo. No entanto, funciona.
O apelo da obra funciona como um relacionamento insatisfatório: ele dá apenas migalhas e faz a pessoa se acostumar com elas, então começa um ciclo vicioso de ficar procurando por essas migalhas como um faminto por algum ou qualquer afeto, ou conteúdo nesse caso. Mas ao contrário de um relacionamento, esse mecanismo não me trouxe um sentimento necessariamente negativo, foi mais uma insatisfação modesta que pode ser chamada também de curiosidade, uma leve falta que mantém o espectador preso na experiência até que ele fique completamente imerso, a ponto de começar a notar pequenas variações de comportamento, de como em algum dia ela faz a mesma coisa com um pouco mais de desleixo, talvez, ou como quando um ângulo de câmera novo é apresentado. Sim, algo tão banal como alternar ângulo de câmera é percebido como grande coisa aqui. Depois de tantas vezes vendo a mesma coisa do mesmo jeito, é refrescante ver o mesmo cômodo de sempre visto de uma perspectiva nova. É como a música de três acordes que usa só dois e só entra no terceiro na ponte: é magia.
Aos preocupados, peço perdão pela minha escolha de fotos para a postagem. “Jeanne Dielman” não se passa apenas na cozinha, ele usa todos os cômodos da casa menos a sacada e até tem algumas cenas externas. Não que isso faça muita diferença para tudo que acabei de descrever, pois ainda continua sendo uma experiência lenta que talvez seja ideal para uma sala de cinema sem pausa e sem distrações maiores, caso contrário é fácil prestar atenção em a mosca zanzando pelo seu quarto é subitamente muito interessante. Ou como seu cachorro é bonito e vistoso. No meu caso, acho que entrar na sessão com muita fome foi o que espantou o sono e me fez vidrar os olhos na tela para não pensar em comida, embora existam muitas cenas envolvendo comida que me deixaram inquieto.
Sendo de 1975, o impacto de “Jeanne Dielman” certamente deve ter sido maior em termos de tema, já que com a crítica a recepção foi mista. De qualquer forma, permanece um recorte de um tempo em que as mulheres tinham um papel na sociedade e até uma existência limitada a ponto de ser torturante, de certa forma, aguentar apenas três horas disso e já pensar que é cansativo. Se esse pequeno período já traz uma reação como essa, estar no lugar dela e fazendo algumas coisas que ela faz só poderia ser o tipo de rotina que vai além do absurdo e se torna algo que corrói a alma da pessoa. E num filme que nunca tira os olhos da personagem para mostrar passo-a-passo como é sua vida, parte do sentimento de tédio e inércia enfadonha vem também da falta de qualquer esboço de reação alegre ou vívida da atriz principal Delphine Seyrig. Por mais que este não seja o melhor de todos os tempos, não deixa de ser extremamente bem-sucedido em sua proposta improvável.