Quem se importa o bastante com tênis a ponto de ir ao cinema por uma história sobre isso? Ou ainda, fazer um filme inteiro sobre o assunto. E não falo do esporte, e sim da peça de vestuário. Pois é, o calçado. Não é à toa que são poucos os trabalhos por aí sobre o assunto, ainda que exista toda uma sub-cultura urbana girando em torno de modelos, marcas, cores e edições especiais, um pessoal que de fato se importa, coleciona e às vezes sequer usa os tênis por aí. Bem, se existia alguma margem para fazer cinema sobre isso, “Air” acha talvez a única margem razoável para isso.
Isso porque envolve bem mais do que a concepção de um produto feito de couro, algodão, espuma e borracha e dos processos de design e de fabricação envolvidos. Nesse caso, concordaria que a história teria um potencial gigantesco para ser um saco. Por mais revolucionários que os Nikes tenham sido em seu tempo, dificilmente é um assunto que dure muito numa roda de conversa. Já o contexto em torno da criação de um modelo específico de tênis que perdura até hoje como um dos mais populares do mundo e um dos mais lucrativos, além de estar associado a um dos maiores atletas da história, aí sim há uma trama.
“Air” acompanha Sonny Vaccaro (Matt Damon), um executivo da área esportiva que trabalha no departamento de basquete da Nike. As coisas não andam muito boas para a marca no esporte, considerando que a maior parte do mercado está nas mãos da Converse e da Adidas. Chega a nova temporada do esporte e as escolhas de novos atletas são feitas. Com os grandes nomes já com negócio fechado, a Nike deve encontrar uma forma de fortalecer seu rol de atletas com um orçamento baixo e uma reputação ainda em construção. A perspectiva de sucesso é pequena, mas Vaccaro tem uma idéia ambiciosa para dar a volta por cima: realizar uma parceria com um jovem atleta em ascensão, Michael Jordan.
Então é isso: o enredo vai além do modelo do tênis, da história de sucesso da marca ou mesmo da ascensão de um executivo específico que poderia estar por trás de tudo isso. Ainda é possível categorizar “Air” como uma biografia num molde familiar hollywoodiano, que não haja engano, mas nada tão óbvio e estereotipado também. Conta-se um jornada bem direta ao ponto, tratando do mesmo conteúdo que cabe em um episódio de documentário em formato de longa-metragem e com uma dramatização dos eventos e maior foco no elenco. É possível acompanhar todas as esferas relacionadas ao processo todo, por mais simples que tudo pareça e possa ser resumido em poucas frases, e a experiência se mostra surpreendentemente divertida, extraindo carisma de personagens dos quais a maioria das pessoas ouviu falar e até criando humor no meio do caminho.
A linguagem de “Air” é moderna ou, ao menos, leve. O filme se leva a sério quando precisa e no geral isso acontece raramente, já que os sentimentos mais fortes exprimidos aqui são a esperança, a perseverança e alegria. Raramente há algum momento de tristeza ou derrota que tome a frente. É quase sempre alguma boa música dos Anos 80 que inicia uma nova cena cheia de energia em ritmos eletrônicos ou nos versos rimados de Run DMC, um novo momento que dá sequência à jornada sinuosa de Steve Vaccaro de evitar que seu pequeno departamento se torne uma piada ainda maior e deixe de existir. Apesar de ser a Nike, há um quê de arquétipo do vira-lata na trama que torna tudo um pouco mais interessante, e ver a Nike, de todas as marcas, nessa posição é algo um tanto incomum. Quase dá para acreditar que é uma história de lixo ao luxo.
E, novamente, preciso reforçar como “Air” consegue apresentar tudo isso de uma forma interessante. Atuações trazem um lado mais humano para a coisa e evita que tecnicalidades e especificidades entrem no caminho do entretenimento. É legal ver que há um rosto por trás da direção da Nike, que alguém correu atrás de Michael Jordan tentando convencê-lo a fechar parceria ao invés de simplesmente aceitar que a marca enviou uma proposta formal ao atleta, tal como um fax ou uma carta que pode ser lido e assinado de forma fria. Quando a informação é recontada friamente, é justamente o que pode parecer. Por sorte há um elenco dando nome e rosto para quase toda etapa importante do processo da criação de um produto, de uma marca e da evolução de outra. Com Ben Affleck dirigindo e atuando, e Matt Damon no papel principal, a dupla clássica dos tempos de “Good Will Hunting” assume a frente de um conto sobre o que talvez seja uma das negociações menos desinteressantes de todos os tempos.
Quem assistiu à minissérie “The Last Dance” já deve saber de 90% da história ou dos beats principais, mas isso não significa que “Air” seja um filme descartável. Aos interessados, ele entra em maior detalhe nos personagens envolvidos na transformação da Nike em uma gigante da indústria no período em que Michael Jordan buscava patrocínio em começo de carreira. Quão interessante a história de um tênis pode ser? Depende de quem escreve, e “Air” consegue transformar isso em duas horas de um filme histórico bem humorado e dinâmico.