Assim como tantos outros filmes nesse último ano, “Nomadland” entrou sorrateiro no radar das pessoas. Continua obscuro para quem não conseguiu se interessar o bastante por cinema ultimamente. Eis que começou a ser nomeado, indicado e premiado nos eventos da crítica, até que em dado momento se tornou o mais cotado para vencer os prêmios importantes. Quando finalmente pude assistir, deu para perceber por que um filme como esse no mínimo chamaria a atenção. Ele é diferente. Talvez o mais entre os indicados e os últimos vencedores do Oscar. Mas será que diferente é bom?
Fern (Frances McDormand) perde seu emprego e seu rumo quando a cidade de Empire, Nevada praticamente deixa de existir com o fechamento da mina que alimentava o mercado com seu negócio. A empresa fecha o empreendimento, a economia local morre aos poucos e a cidade perde sua relevância. Cabe à mulher, em meia idade e também perdendo sua relevância em um mercado de trabalho em eterno movimento, buscar formas de sobreviver em sua condição delicada. Ela encontra rumo viajando pelo país e morando em sua van como uma nômade, de trabalho em trabalho, de lugar novo a lugar novo.
“Nomadland” tem uma premissa interessante. Seu uso de texto ainda na introdução define o tom e o tema perfeitamente, falando sobre o fechamento do empreendimento em Janeiro e a descontinuação do código de CEP em Julho. Como pode uma cidade fechar? Empresas nascem e quebram, mas cidades? A não ser por bombardeios ou doenças, é difícil imaginar uma razão plausível para que uma cidade deixe de existir. Mas acontece. E não deve ter sido a primeira vez. Curioso pensar como a máquina capitalista gira e move as peças que julga necessárias de acordo com seu interesse. No caminho, as pessoas lidam com as consequências, uns melhor que outros. Essa é a história de gente que, sob certo ponto de vista, se deram mal no fim das contas, exceto que existe um lado diferente do senso comum sobre seu novo estilo de vida.
O interessante é que “Nomadland” propõe um debate ou, no mínimo, desperta o pensamento sobre a situação que apresenta. Os tais nômades da história vivem no meio do nada, literalmente, dentro de suas vans e com pouquíssimos recursos. É proibido que eles morem em seus carros nas cidades civilizadas, então eles se distanciam delas o máximo possível para encontrar seus semelhantes e tentar sobreviver juntos. Entre eles, há os que estão felizes com essa quebra, essa fuga do sistema tido como opressor. Mas será que eles são realmente satisfeitos ou foram forçados a enxergar valor na dificuldade que vivem? Será que ainda prefeririam continuar esse estilo de vida se o sistema voltasse a oferecer oportunidades para eles? As questões permeiam o ar ao longo da apresentação de gente que talvez seriam chamados de andarilhos por aqueles da vida tradicional civilizada.
Chloé Zhao realiza um experimento interessante de misturar realidade e ficção quando introduz nômades de verdade como personagens interpretando eles mesmos, um pedaço documental inserido numa narrativa fictícia com Frances McDormand servindo como um elemento externo criado para ser testemunha de tudo. Sem ela, talvez “Nomadland” teria de ser um documentário buscando os tais nômades mencionados no livro em que o filme se baseou, “Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century”. Com ela, a obra consegue cruzar o véu entre tipos de cinema, também se permitindo algumas liberdades poéticas como construir uma narrativa contemplativa e introspectiva para explorar a realidade dos ditos coadjuvantes, desenvolvendo um pouco de história da protagonista e criando momentos para explorar a também a vivência pessoal dela. Assim, pode-se abrir espaço para cenas que, sob um viés objetivo, possuem pouco propósito, ao passo que podem ser justificadas como formas de apresentar cenários novos e trabalhar o conflito interno da protagonista, que se relega a encarar suas dificuldades em silêncio e sozinha na maior parte do tempo.
Por outro lado, essa contemplação sobre a experiência de estar vivo, morar nas montanhas e nas florestas e nas estradas do país, por vezes traz uma indulgência por parte da diretora vinda de sua aparente maravilha de estar nesses lugares. O lado bonito disso é ver uma cineasta apaixonada pela sua obra, querendo compartilhar os momentos que ela mesma vivenciou; tomadas longas, apresentando cenários vastos e infinitos com natureza abundante e nenhum sinal de vida perceptível. Zhao claramente gostou das planícies e das montanhas, dada a quantidade de enquadramentos valorizando as qualidades desses planos de fundo, também aproveitando que há certo sentido em mostrá-los dentro dessa história. O custo de tudo isso pode ser percebido no ritmo. “Nomadland” não é o filme mais dinâmico por aí. Longe disso, está mais para uma experiência lenta e vagarosa que por vezes arrisca perder o espectador para o sono. Aos apreciadores de paisagens, é um prato cheio; especialmente pela cinematografia favorecer a estética de forma que também seja impressionante para quem assiste. Há também uma boa história com conteúdo a ser aproveitado, estaria mentindo se dissesse que não, mas também é necessário um pouco mais de investimento por parte do espectador para acompanhar o filme em sua viagem sem pressa.
Eis o vencedor do Oscar de Melhor Filme em um ano irregular. Não foi tanta surpresa porque já era cotado como o favorito nos meses antes de uma cerimônia que, até o momento, foi a pior em muitos anos. Chata, simplista e pecando no entretenimento, o que com certeza não vai ajudar nos números de audiência. Todavia, algumas questões emergem em meio a isso tudo. Claro, a cerimônia foi dessa forma porque era impossível recriar o mesmo evento que contratava gente para preencher assentos quando alguém ia ao banheiro. Isso é perdoável, sem problema, um ano para ser esquecido. Quanto ao resto, não há como descartar que o interesse foi menor em cinema num ano conturbado como 2020, e conseqüentemente a quantidade, a variedade e até a qualidade das produções sofreu. Será que num ano normal “Nomadland”, ganharia? Difícil imaginar que sim, já que não é nem mesmo o melhor dentre os indicados. Uma escolha atípica para um ano atípico.