É completamente alienígena o pensamento de se sentir violentado sexualmente como homem. Não faz parte da realidade masculina e, se existe, pouco se ouve falar de tais casos. De qualquer forma, não há como comparar isso com o que acontece de fato com mulheres mundo afora. “Promising Young Woman” ressalta um lado sujo da vivência feminina em termos de integridade física e psicológica, como a violência entre sexos destrói vidas, sonhos e futuros, porém sem parecer uma campanha de discurso batido, palavras repetidas e nenhuma originalidade. Ao menos aqui se vê um esforço para criar uma história e um argumento significativamente mais fortes do que se costuma encontrar nas redes sociais.
Cassandra (Carey Mulligan) está em seus 30 e poucos anos, trabalha num café e não liga para nada, aparentemente. Está satisfeita com seu salário baixo, morando com os pais, sem perspectiva de futuro e ela nem se importa. Suas noites, por outro lado, são diferentes. Seu entretenimento de escolha é sair em bares e se deixar ser levada para as casas dos homens, normalmente fingindo estar embriagada, para provar seu ponto: homens querem sexo a qualquer custo, não se importam com o estado mental ou a imoralidade de se aproveitar de alguém indefeso. Isso muda um pouco quando ela reencontra um colega de faculdade, Ryan (Bo Burnham), e começa a se envolver romanticamente pela primeira vez em muito tempo.
Seria criticar o processo de sofrimento apresentado uma barreira para homens, considerando que eles nunca viverão algo assim? Crítica em termos de roteiro mesmo, de julgar idéias como plausíveis ou absurdas, lógicas ou incoerentes, inteligentes ou estúpidas. Como alguém pode dar juízo de valor sem ter um parâmetro de como esse processo de sofrimento ocorre, da sublimação dele e do nível do trauma? É uma pergunta curiosa, mesmo que possa não ser pertinente no âmbito da crítica de cinema. “Promising Young Woman” apresenta o ponto de vista particular de uma artista, suas idéias e concepções de como é estar no lugar de uma personagem que perdeu muito na vida e toma uma decisão tenaz sobre seu direcionamento futuro. Qual referência a diretora e roteirista tinha para escrever essa personagem? Talvez a mesma que George Lucas tinha para escrever Ewoks e Dathomirians. Não importa.
O que importa é analisar o conteúdo apresentado e, como dito, a ousadia é o primeiro elemento a chamar a atenção em “Promising Young Woman”. Começando já com uma cena forte e longa, sem medo de se estender e mostrar toda a disposição de um canalha para cometer um abuso, o filme leva o espectador pela mão nesse passeio desagradável até que chega a hora da primeira e principal virada da história, que alimenta toda a premissa: a protagonista finge vulnerabilidade para provar um ponto, amedrontar seus abusadores, talvez ensinar uma lição de moral. É como mudar o mundo uma pessoa por vez, uma ameaça por vez. Funciona muito bem como introdução para o tipo de pessoa que Cassandra é no momento, restando descobrir como ela chega até o ponto de se propor a uma experiência peculiar como essa.
Então se percebe que não é uma experiência, é um estilo de vida. Ou algo do tipo, se é que se possa chamar assim. “Promising Young Woman” se divide em capítulos que mostram novas investidas da protagonista contra algum homem desavisado. Nesse ponto o filme me perde um pouco. Pensar que uma pessoa dedica a vida a uma obsessão de ferir os outros como desforra pelo que sofreu soa um pouco absurdo, uma exacerbação do conceito do animal ferido sendo agressivo com aqueles ao seu redor, uma inclinação obstinada ao extremo de forma que até mesmo num filme é um pouco questionável. Mas tudo bem, não faltam indivíduos disfuncionais no, o problema é que também fica um pouco repetitivo. Repetir o mesmo truque algumas vezes não tem o mesmo choque da sequência inicial, mesmo que não executado exatamente da mesma forma e trazendo algumas novidades a cada vez. Essencialmente, a progressão narrativa mais parece o preenchimento de itens em uma lista — literalmente, nesse caso — e apenas no final há um pouco mais de satisfação quando se encontra há mais risco e o jogo de Cassandra sobe de nível.
Tirando essa parte, a construção do passado traumático que alimenta esse comportamento diferenciado da protagonista é curioso… por um momento. A princípio, é um ponto que desperta o interesse porque por trás de todo personagem traumatizado há um fato marcante ou vários deles. A parte menos marcante é que “Promising Young Woman” não faz esse mistério ser dos mais imprevisíveis e o trabalha de uma forma bem direta e pouco inspirada. Sendo justo, a idéia não era esconder o máximo possível e fazer um alarde sobre a omissão porque o fato oculto em si não é extraordinário dentro do assunto de abuso sexual. Isso só não muda o fato de que poderia ter havido um pouco mais de carinho com essa história pregressa, pois impacto nasce com a narrativa e quase nunca é inerente. Com as dicas que o filme dá, logo fica claro para onde ele aponta e se perde a graça.
Quanto aos atores, esse é um show particular de Carey Mulligan. Ela não está sozinha na história ou tem um foco que eclipsa todos os outros coadjuvantes como em um estudo de personagem intimista, só não há comparação digna que consiga fazer frente com ela. Sua atuação possui a perversão, o sadismo e o cinismo de alguém que não se importa mais e só segue em frente porque sim. Não tanto uma morte do ego ou uma persona sofrida, e sim uma personalidade oculta, que só possui lugar para raiva e descrença por tudo que as pessoas afirmam defender. Isso torna a história um pouco mais digerível, menos absurda e interessante pela protagonista não ser previsível em sua essência. A única estranheza foi ver que Mulligan parecia um pouco velha para o papel de uma moça de 30 anos que largou a faculdade. Seus 36 anos não se passaram tão naturalmente como 30. É algo pequeno e, aliás, não seria a primeira vez que Hollywood erra na idade de seu elenco.