Sempre conheci “Nashville” por reputação. Não foi meia dúzia de vezes que ouvi alguém mencionar o filme usando adjetivos lisonjeadores, descrevendo-o como a obra-prima de Robert Altman, um clássico dos Anos 70 ou uma história de escopo grande demais para limitar a um retrato do cenário musical na capital americana do Country. Por um tempo, achei que se tratasse disso, uma visão rasa e ignorante sobre um filme que nunca tinha visto nem lido muito sobre. Finalmente assisti e a resposta ainda não é das mais claras. Se antes era simplista e rasa, agora é tão cheia de detalhes diversos que não sei mais se é uma espetáculo de ambição consolidada ou apenas um coletivo de idéias em um longa-metragem com perto de três horas. A qualidade não chega a determinar definitivamente que é o primeiro caso, mas ainda é um filme dos bons. Muito interessante, no mínimo.
A capital do Country tem toda a energia frenética e o movimento de uma cidade grande, com pessoas seguindo aquilo que acham que acreditam a despeito de tantas outras centenas de milhares seguindo planos amplamente diferentes e desconhecidos. Mais do que isso, é uma cidade cheia de vida e cheia de música. Há gente de todo tipo. Há aqueles que estão no cenário musical há um tempo, gente como Haven Hamilton (Henry Gibson); outros de rosto mais jovem, como a queridinha Barbara Jean (Ronee Blakley); e outros que sequer são conhecidos, mas morreriam por uma chance de fazerem parte do mesmo cenário que os gigantes ocupam. Ao mesmo tempo, um candidato à presidência chega na cidade em missão de arrecadar fundos para sua vindoura campanha política.
Tudo acontece em Nashville. A música é só o que há na superfície e, mesmo assim, é um plano de fundo mais do que suficientemente rico para criar as intrigas de um bom enredo e tecer relações entre pessoas de todos os estilos, atitudes e valores. É uma área de trabalho como qualquer outra. Bem, talvez não como qualquer outra, singular por atrair gente das variantes mais excêntricas, das vozes mais expressivas e das ambições de maior tamanho. Além desses, talvez o maior diferencial seja a quantidade de pessoas que querem fazer parte dela e o número ainda maior de interessados, dos que apenas apreciam a arte até os que acompanham as vidas dos artistas. Sempre há alguém fazendo algo ou tramando algo ou, no mínimo, alguém falando disso tudo. Entre tantos lugares possíveis, uma cidade que concentra um cenário musical e é chamada de capital do country está longe de ser um lugar de pouco movimento.
Até aí, qualquer lugar pode ser tão movimentado quanto — Los Angeles, Coruscant, Nova York — a diferença é como a magnitude de cada lugar é trabalhada na prática. A série “Star Wars”, por exemplo, tem uma galáxia inteira a seu dispor e trata cada planeta como se fosse uma cidade. Sempre que um personagem está sendo procurado, basta a informação do planeta em que ele se encontra para a nave dos personagens ir diretamente até ele. É outra abordagem, uma que se preocupa mais com caracterizações diferentes de cenário e personagem em cada lugar novo. “Nashville” traz uma visão diferenciada disso ao usar seu status como centro urbano para introduzir nada menos que duas dúzias de personagens. São 24 protagonistas, ou melhor, nenhum protagonista e 24 coadjuvantes dividindo espaço sob um arranjo peculiar, o qual busca comunicar um ponto em vez de trabalhar seu elenco a fundo como numa narrativa tradicional.
Alguns ainda se destacam nesse conjunto. De tanto que falam em Barbara Jean, é impossível não pensar em considerá-la uma personagem relevante. Ela é a voz do momento por quem os fãs fazem multidões em aeroportos e enchem platéias para assistir nem que seja de longe. Artistas, exceto os que a odeiam, querem estar no mesmo palco e associados a ela de alguma forma. Todos oram pela recuperação de Barbara Jean, querem mais informações sobre a saúde de Barbara Jean. Barbara Jean, Barbara Jean. As pessoas se repetem. Qual a importância dessa mulher que ainda nem cantou e é muito respeitada? Assim como outras perguntas relacionadas à relevância de cada indivíduo, não é uma exatamente respondida. O que “Nashville” prefere fazer é deixar a música falar na 1 hora inteira dedicada aos números musicais. Então se entende quem é Haven Hamilton e quem é Barbara Jean e quem é a garçonete desconhecida chamada para cantar ao vivo.
Se isso parece muito, é porque é mesmo. O lado não tão positivo da experiência é perceber que a história pausa vezes demais para apresentar um número musical e às vezes até mais de um em seqüência. Parece em excesso e nem sempre com uma deixa narrativa para que a cantoria seja justificada. Mesmo Nashville sendo a capital da música e o filme centrado na cultura da música Country e Folk, não é um show musical também. Isso só se torna um pouco mais aceitável porque tanta música consegue não ser um desastre. Os atores não são dublados ou cantam Waylon Jennings, Johnny Cash e Loretta Lynn, todos usam suas vozes em canções escritas por eles mesmos. Se 1 hora de música parecer excessivo, poderia ser muito pior se fosse 1 hora de música ruim.
Mas do que “Nashville” se trata mesmo? Não é só uma coisa, e essa é a única certeza sobre o enredo. Nem duas, é praticamente uma para cada personagem diferente, exceto para os que têm o mesmo objetivo. Essa é uma história sobre pessoas seguindo suas próprias agendas, cada um com a sua dominando sua atenção a despeito de todas as outras pessoas ao redor e suas próprias metas. Como dita uma das regras mais básicas de roteiro, basta existir um objetivo e um obstáculo para se ter uma história, então eis 24 personagens que inevitavelmente cruzam caminhos e já se pode imaginar como os eventos se desenrolam. No entanto, essa não é uma obra tradicional e a dinâmica descrita aqui não funciona da forma que se imagina. Há uma essência quase aleatória na forma como os eventos acontecem, como se o acaso fosse o principal norteador da causalidade. Barbara Jean chega de avião e centenas esperam por ela; assim que a moça solta as primeiras palavras ao público, ela desmaia na frente de todo mundo e causa uma comoção. Na saída do aeroporto, algo se desprende de um carro e causa um acidente enorme, deixando as pessoas presas na rodovia; mas nada disso impede a van do candidato à presidência de manter os alto-falantes ligados com o discurso conforme as pessoas saem dos carros para andar entre o movimento. O tom bizarro se mantém ao longo da obra.
O final, então, é a maior demonstração de ironia dramática que se poderia fabricar dentro da proposta de ser um dos filmes mais americanos que já vi. E não no sentido comum da expressão, do sonho americano ou do aspecto comercial de muitas obras americanas, mas pela obra agregar tantos elementos subliminares que fazem parte da experiência americana e muitas vezes passam despercebidos conforme outros aspectos do estilo de vida são evocados em outras obras. “Nashville” é sobre pessoas ambiciosas, hedonismo desenfreado, egoísmo, política e excentricidades artísticas. Ah, e alguém acaba sendo baleado, para não faltar.