“I Care a Lot” deu o que falar antes mesmo de eu ter a chance de assistir. No mesmo dia, dois amigos o recomendaram: um deles falou que achou bem bom; o outro falou que era para fugir e que o filme era cheio de burrices. Quando contei de um para o outro, os dois ficaram indignados e o primeiro até concedeu que existem algumas falhas, embora tenha mantido a impressão positiva. Então assisti e devo concordar mais com o segundo amigo. Não cheguei a detestar tanto quanto ele e achar o filme mais ofensivamente ruim do ano, porém estaria mentindo se dissesse que gostei. Há bem mais que só algumas falhas aqui.
Cuidar dos outros resume bem a vida de Marla Grayson (Rosamund Pike). Ou melhor, cuidar de si mesma cuidando dos outros. Ela trabalha como tutora legal de idosos, mas não por conta de um impulso altruísta de viver em função dos outros, seu impulso é predatorial como o de alguém que fareja vulnerabilidade e oportunidade de enriquecer. O alvo é identificado, normalmente uma pessoa de idade morando sozinha, e logo Marla dá um jeito de usar a justiça a seu favor para colocar todos os bens da pessoa em sua posse para que ela possa gerenciá-los enquanto a vítima passa o resto dos dias numa casa de repouso vendo seu dinheiro evaporar. Mas as coisas dão errado quando Marla escolhe um alvo que não é tão impotente quanto achava.
Não entendo como “I Care a Lot” pode ser chamado de uma comédia em qualquer sentido, mesmo comédia negra. Primeiramente, usando de uma afirmação rasa, porque não tem graça. E tudo bem, muitas comédias não têm graça e ainda são comédias identificáveis. Nem todas fazem rir ou tentam tirar risadas, a extensão do gênero vai muito além de ser engraçadinho. Indo além disso, é difícil identificar de que forma essa obra se caracterizaria como uma comédia exceto talvez pelos absurdos que apresenta. E não absurdos esdrúxulos, satíricos e que abusam das limitações do mundo real para algum efeito — normalmente cômico. Trata-se de absurdos apenas incoerentes, disfuncionais em seja lá qual for o gênero, em especial por seu efeito medíocre que mais parece uma justificativa conveniente para resolver situações da trama. Se for uma comédia ou não, é uma das mais fracas.
Talvez o tom então? “I Care a Lot” é uma obra leve, sem dúvida. Leve porque não faz questão de levar o assunto central muito a sério nem trata das implicações acerca do trabalho da protagonista com seriedade. Não há um estudo de moralidade por trás dos atos dela, por exemplo. Ela faz o que faz e trata tudo como um jogo. O filme faz isso também, trata isso e todo o resto como se fosse um jogo ou uma grande brincadeira, só faltando os envolvidos se divertirem de montão na experiência de suas vidas. Isso é uma possibilidade a favor da definição de gênero. Definitivamente existem formas melhores de fazer parte dele sem ser dessa. A leveza torna a obra fácil de digerir, tranqüila de acompanhar, isso não se pode tirar dela.; em nenhum momento se mostra cansativa ou arrastada, flui bem do começo ao fim. Há um bom ritmo, há até cenas boas ao longo do caminho. Não é oneroso chegar aos créditos finais nem é o melhor passeio do mundo.
É mais ou menos como “Thor: Ragnarok“: não tão bom e fácil de assistir. O que pesa mais, no fim das contas, é a primeira parte. A não ser que o ritmo seja muito desbalanceado e atrapalhe a experiência, seja por uma Edição bagunçada ou uma direção de cena ineficiente, pode ser como nos casos de filmes ótimos que são um pouco mais lentos e exigem maior paciência. Filmes mais antigos e mudos, em especial, vêm a mente. Normalmente, esses exemplos compensam em conteúdo onde não são dinâmicos, o que é relativamente perdoável porque não se fala de vídeos do YouTube, embora pareça às vezes que o estilo que o diretor J Blakeson busca é algo na mesma linha. Moderno na estética e na apresentação, como se vêm em tantos vídeos cheios de animações de After Effects, transições complexas, efeitos sonoros e texto animado, tudo para desviar atenção do conteúdo raso.
A imagem acima é bem ilustrativa da filosofia estilo sem substância de “I Care a Lot”. Em dado momento, deseja-se mostrar qual a extensão da trapaça de Marla quando ela fala de todos os clientes sob seus cuidados, então aparece a parede de seu escritório com centenas de fotografias impressas no mesmo tamanho, com o mesmo layout de bordas brancas e nome embaixo, perfeitamente alinhadas na parede. É uma imagem que chama a atenção para fazer o espectador pensar “Uau, quantos clientes!!”, e então pensar no tamanho da idiotice que é montar uma parede exposta para as pessoas terem certeza que Marla é uma psicopata excêntrica. Se ela desejava ser discreta de alguma forma, não é desse jeito. Para completar, ela usa um vestido vermelho, batom vermelho e xícara de espresso vermelha porque provavelmente alguém se preocupa muito com a palheta de cores que alguma página aleatória vai postar no Instagram.
E há também detalhes bem mais graves que excentricidade estética. Detalhes sendo brando na escolha de palavras, pois o nível da estupidez de algumas idéias só faz pensar que esse é um filme besta. Talvez não se leve a sério mesmo, o pior é o espectador não levá-lo a sério por não conseguir enxergar valor nem mesmo em sua proposta supostamente diferenciada. Em outras palavras, é difícil engolir a execução estúpida de “I Care a Lot” em coisas simples como a glorificação forçada da protagonista, além de tentar a exaltar como figura inteligente e grandiosa à custa dos antagonistas por exemplo. Mulher inteligente contra criminosos perigosos e sem escrúpulos: essa é a trama. E ainda rendeu um Globo de Ouro para Rosamund Pike, de alguma forma.