Com seu filme prévio, “Sorte Cega”, censurado pelo governo polonês e mantido sem lançamento de 1981 até 1987, o cineasta seguiu com um novo projeto mergulhado em uma atmosfera sem esperança, de desolação e desconsolo. Lançado em 1985, “Sem Fim” apresenta uma abordagem que, se não intencional, é certamente curiosa depois de um acontecimento infeliz como ter seu trabalho de vida censurado, uma possível demonstração da insatisfação pessimista do diretor perante a situação política. Além do mais, é um grande passo a frente de minha última e não tão positiva experiência como diretor em sua estréia, “A Cicatriz“.
Antek Zyro está morto. Sua hora chega com um ataque cardíaco súbito que o tira de sua mulher, Ursula (Grazyna Szapolowska), e filho, Jacek. Os dois seguem a vida sem saber como proceder direito, com a mulher contemplando a todo momento o valor que o relacionamento tinha em sua vida, só que tarde demais, restando apenas a falta que ela sente. Mas Antek não se foi completamente. Seu espírito aparece para Ursula em sua jornada de luto sem dizer nada, apenas se mostrando presente para seus olhos. Ao mesmo tempo, a esposa de um cliente que Antek defendia ressurge pedindo ajuda para tirar seu marido da prisão, acusado de organizar uma greve.
A parte complicada de analisar parte do trabalho de Krzysztof Kieslowski é ter que considerar o contexto político ao redor. Até diria que é um pouco chato pelo empenho necessário para entender qual era o status sociopolítico da Polônia para além do superficial e então compreender quais são as possíveis analogias tecidas pelo artista em suas histórias. Tudo começa com a Polônia fazer parte do Bloco do Leste sob influência influência e se complica conforme as movimentações sociais são consideradas em períodos mais específicos, como a instituição da Lei Marcial em 1981 para suprimir manifestações sociais da oposição. Entender também as implicações disso no dia-a-dia do cidadão polonês, desde o mais comum até o artista, é essencial para compreender que tipo de mensagem tenta ser passada se algo assim for buscado para além do conteúdo explícito da obra.
Acaba por ser a situação de enxergar significado quando pode ter sido uma decisão motivada por qualquer outra coisa; a tinta azul utilizada na pintura porque a cinza acabou e os críticos reavaliarem isso como um toque de genialidade. Assim, é possível enxergar o tom pesado de “Sem Fim” como uma representação da infelicidade do diretor de ver seu trabalho retido por um governo ignorante ou como um sentimento referente a um contexto sociopolítico muito mais amplo, ligado às insurreições de esperança para o povo polonês que eram rapidamente respondidas com represálias violentas. Seja como for, algumas coisas estão ali sem mas: “Sem Fim” é um filme de mão pesada sobre uma mulher enfrentando o luto da perda de seu marido ao mesmo tempo que não está em completa paz por ainda ser acompanhada de seu fantasma; enquanto que a única objetivamente política do enredo envolve o julgamento do ex-cliente de Antek por organização de greve.
Analisar “Sem Fim” pelo que ele traz, sentimentalmente, é encontrar um trabalho comprometido com a realidade subjetiva de sua protagonista; representar seu luto como o norte desnorteante que a acompanha em tudo que ela se propõe a fazer. De certa forma, é um paradoxo. Por mais que as intenções conscientes sejam de seguir com a vida e as coisas que ainda restam e valem a pena serem vividas para esquecer de seu luto, ela revisita pensamentos ligados ao seu marido e até toma atitudes diretamente motivadas pela figura do homem. Ela não consegue fugir dele nem quando tenta fugir diretamente. Como um todo, a narrativa mais que consegue transmitir tal sentimento de desespero solitário concentrado numa mulher e na presença pontual e simbolicamente efetiva do marido existir como fantasma. Exceto pelas alusões sobrenaturais não tão sutis, isto é.
Sendo mais específico nas questões da narrativa funcionar, “Sem Fim” funciona particularmente bem nas mãos de Grazyna Szapolowska interpretando a viúva protagonista. Ela traz a dor de bandeja para o espectador degustar como preferir e em porções diferenciadas. Há o olhar distante denotando os pensamentos vagos de alguém ausente do momento atual, com a mente em outro lugar; mas também há um pouco mais que isso, delírios e comportamentos pequenos que chamam a atenção para si porque não indicam seu propósito imediatamente. Por que o diretor mostraria aquilo por tanto tempo, aquele ato tão banal? Nada faz muito sentido quando se está com a cabeça em outro lugar, coisa que o espectador não está quando está imerso na experiência cinematográfica e só passa a entender depois que se desliga dela. Aqui há uma demonstração da ironia poética de entender o filme melhor só depois que ele terminar.
A protagonista é a principal avatar da melancolia que permeia a obra sem exceção. Não há alívio cômico, não há final feliz. Krzysztof Kieslowski se compromete a um tom no começo da história e, ao contrário do que pode parecer, não é um exemplo de monotonia ou ausência de desenvolvimento. Além de todos os desdobramentos menores do enredo e suas subtramas, os quais por si já movimentam a história o suficiente para que não permaneça na mesma estaca, a história se desenvolve, sim. “Sem Fim” vai da tristeza à completa desilusão, começa na superfície do sentimento e o persegue em busca de intensidade e aprofundamento.
Em uma nota irrelevante, foi interessante assistir “Sem Fim” logo na sequência de outro trabalho de Kieslowski em sua mostra no Cine Passeio. Essencialmente, pensando nos dois sem me aprofundar, é possível enxergar uma similaridade estilística e até temática, uma que mostra que os dois vieram da mesma fonte. E vistos com pouco tempo entre eles, fica ainda mais notável a diferença de proficiência do cineasta no manuseio de uma obra envolvendo conflitos internos de personagens inseridos em cenários instáveis. Nem parece justo comparar o desenvolvimento dos dois protagonistas.