“Acho que essa pode ser minha obra-prima”. Essas são as palavras que encerram “Inglourious Basterds”, pouco antes do nome de Quentin Tarantino aparecer bem grande, como se ele estivesse se congratulando pelo seu filme. É um gesto bem assoberbado, mas que aqui não será contestado por essa obra ser realmente a melhor da carreira do diretor até então. Obra-prima? Não sei, melhor filme da carreira já é um título grandioso o bastante. Depois de encarar gângsteres, revistas pulp, blaxploitation, cinema asiático e o estilo grindhouse, Tarantino segue em sua jornada de revisitar gêneros marcantes do cinema americano e mergulha aqui na Segunda Guerra Mundial. Ou seja, matar nazistas. Todos eles. Aos montes.
O conflito entre Aliados e o Eixo se encaminha para o fim em 1944. As forças aliadas sobrepujam cada vez mais os esforços da Alemanha nazista de Adolf Hitler no front, ao passo que conquistam outras pequenas vitórias usando métodos menos tradicionais: um esquadrão de elite, judeus americanos especializados em caçar nazistas e alvos de grande valor para o exército. Eles são os “Bastardos Inglórios”, seu método é usar toda e qualquer técnica para desestabilizar as forças inimigas em ataques espertos e brutais. Liderados pelo Tenente Aldo Raine (Brad Pitt), eles espalham seu nome com seus atos Alemanha afora para que o inimigo saiba quem deve temer.
Assim como outros filmes de Quentin Tarantino, a idéia por trás de “Inglourious Basterds” é exatamente o que pode se esperar dele descrevendo seus trabalhos em entrevista. Algo como: “Segunda Guerra mundial! As pessoas morrem aos montes pela Europa tentando derrubar o Terceiro Reich, então surge um bando de judeus vingativos armados até os dentes, seu líder tem uma faca gigante e outro cara tem um apelido irado e um taco de beisebol. Para completar, um nome fodão pro grupo, tipo ‘Bastardos Inglórios’, porque eles sujam as mãos e são uns verdadeiros bastardos”. É isso. Parece idéia de filme de ação vindo de uma criança e talvez seja simples assim mesmo. Essa é a prova de que até os conceitos mais bobos podem ser trabalhados por alguém que sabe o que está fazendo. O resultado não talvez não seja um estudo de personagem sobre a culpa alemã, até porque nem mesmo tenta ser. É completamente possível contar uma boa história com bons personagens e ação banhada a sangue a partir de algo assim.
Uma inspiração clara é “Where Eagles Dare” de 1968, filme de ação com Clint Eastwood sobre uma missão de invasão a um castelo nazista para resgatar um General aliado. Muitos tiros, muitas mortes. Novamente, um conceito simples como trucidar nazistas, uma fortaleza impenetrável e heróis com tiros infinitos. “Inglourious Basterds” segue o mesmo caminho passando pelo filtro Tarantino e os toques de humor, diálogos espertos, violência ridiculamente explícita, cenas de ação altamente estilizadas e músicas populares em momentos-chave para dar um último charme. Nada de novo, na verdade, para quem conhece o trabalho do diretor. As mesmas características podem ser encontradas em “The Hateful Eight” e “Pulp Fiction“, então até perde um pouco o sentido usá-las como elogio aqui. Mas por que não? Os mesmos ingredientes funcionam mal em “Death Proof“, logo merecem ser colocados como elementos do sucesso aqui.
Isso vale mais ainda porque “Inglourious Basterds” é provavelmente a melhor execução desses conceitos da carreira do diretor. Dificilmente poderia ser chamado de fórmula porque cada filme é bem diferente do outro exceto por grande parte trazer uma dose cavalar de violência no clímax. São cinco atos de uma história que começa numa fazendinha na França com uma garota chamada Shosanna (Mélanie Laurent) e um oficial da SS, Hans Landa (Christoph Waltz). Uma cena introdutória um tanto peculiar e diferente daquilo que se toma como norma de primeiro ato em escrita de roteiro, apresentando dois coadjuvantes sem nem tocar no nome dos Bastardos pelos primeiros 40 minutos. Ousada e funcional, uma abertura esplêndida porque mostra função mais para frente quando a história alcança esses dois personagens novamente. Tudo chega a algum lugar: essa é mágica do desenrolar dessa história em particular. Por vezes o andamento diferenciado parece trazer exposição gratuita e cenas sem propósito aparente, sem parecer ter importância a longo prazo, então a promessa é paga e o conceito aparentemente simples demais de filme de ação se desdobra em uma grande história que envolve bem mais do que os personagens do esquadrão do título.
“Inglourious Basterds” é a prova de que Quentin Tarantino é um excelente roteirista. Se “Pulp Fiction” foi espertinho, esse é isso e bem mais. É um filme de guerra como poucos, Tarantino abusando da licença poética para inventar um esquadrão de morte com o único intuito de massacrar nazistas, a desculpa que ele precisava para criar cenas de ação com sangue esguichando de forma que seria impossível em ninhos de metralhadora, trincheiras e tiroteios de guerra tradicionais. A licença poética vai bem mais longe que isso quando o diretor decide tomar algumas liberdades a mais em função do entretenimento, não deixando nem mesmo os fatos históricos entrarem no caminho do que ele quer escrever. Foi surpreendente de forma positiva na primeira vez e continua sendo até hoje, outra demonstração de ousadia vinda de um roteiro singular.
Já a demonstração de que Tarantino é um excelente diretor vem por parte das cenas de ação e diálogo, os dois pilares da obra, basicamente. A distribuição de cenas insanas e cenas calmas, um tiroteio frenético entre conversas em cafés parisienses, faz a experiência fluir sem arrastos por equilibrar bem em seu ritmo a dosagem das duas coisas que o cineasta faz de melhor. De um lado, a violência chocante e espetacular despertando um tipo de resposta nervosamente cômica da audiência; um tiro na cabeça vindo do nada espirrando sangue na cara de outra que se apavora e aciona a metralhadora por reflexo, matando mais alguns e deixando um tipo de susto ao espectador que não sabe bem como reagir se não aplaudir. Do outro lado, atores sob uma direção que consegue extrair comédia até de poucas palavras ditas da maneira certa, gestos desacompanhados de diálogo também hilários, e às vezes até uma tensão subliminar quando um personagem fala num tom inquisitivo e não consegue evitar parecer ameaçador porque exala inteligência.
É isso que se encontra em cenas boas demais para não serem, vez após vez repetidas e lembradas por aqueles que gostam do filme. Há quem nunca superou o “Gorlomi” e o “Antonio Margheriti”: é comédia baseada em surpresa num momento importante, um alívio cômico que chega num momento de tensão muito alta. Simples como três pessoas pronunciarem italiano errado e Christoph Waltz dominar a cena inteira no instante em que abre a boca. Eis um personagem que só tem cenas boas e decolou ao infinito nas costas da performance sublime de Waltz. Sem ele, sobraria Brad Pitt de sotaque caipira e algumas outras idéias mirabolantes, muito do sucesso se perderia. Se não uma obra-prima, “Inglourious Basterds” traz Tarantino sendo Tarantino em seu melhor.