Dez anos se passam desde que Clarice Starling (Julianne Moore) captura o assassino em série Buffalo Bill. Dez anos desde que Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) logrou as autoridades e escapou de sua prisão, vivendo escondido sob outra identidade. Quando Clarice se encontra acusada injustamente por uma operação catastrófica e sua carreira é posta em risco, seu passado retorna com a oferta de Mason Verger (Gary Oldman), um milionário influente que também divide história com Lecter, de colocá-la de volta no encalço de seu antigo colega. Hannibal logo se vê forçado a emergir das sombras e agir novamente.
Nunca entendi por que as pessoas lincham “Hannibal”. No lançamento foi diferente, lembro de muitos estarem satisfeitos e até elogiando bastante, alguns sentindo que valeu a pena esperar 10 anos por uma continuação de “Silence of the Lambs“. Pena não existir internet em 2001 como ela é hoje para acompanhar a recepção de perto. Resta revisitar as críticas da época, e foi fazendo isso que me surpreendi em ver que no Rotten Tomatoes ele tem um escore de apenas 39% de críticas positivas. O filme nunca foi considerado uma obra-prima e, mesmo assim, me surpreendi com o desgosto amplo por achar que, no mínimo, a recepção havia sido morna. Quando assisti pela primeira vez, perto do lançamento, gostei bastante, continuei gostando nas vezes seguintes e continuo gostando hoje.
“Hannibal” já começa interessante por não se colocar no mesmo molde de “The Silence of the Lambs“. Já não é mais uma continuação de poucas mudanças, outra história sobre um policial visitando um criminoso notoriamente inteligente para solucionar um caso complicado. Passam-se 10 anos desde a história anterior, com Hannibal Lecter em liberdade para fazer todas as coisas que antes o espectador só poderia imaginar. Há quem possa trazer o argumento de que se teme mais aquilo que não se vê, que o suspense está na sugestão dos atos em vez da exposição deles. Isso é verdade em muitos casos e, inclusive, funciona no próprio “The Silence of the Lambs“, seria um recurso pobre apelar para flashbacks para mostrar os atos do vilão, especialmente porque se guarda espaço para isso em momentos cruciais da história. Com “Hannibal”, aproveita-se a oportunidade para expandir o conceito original em um ambiente novo, dar asas para os personagens, por assim dizer.
Agora o caro Doutor Lecter está solto. Tudo que se imaginou antes, agora pode ser visto sem improvisos ou dificuldades maiores. Será ele um canibal desalmado que mata sem razão? Não exatamente. Ele tem seu critério, seu método de conduzir seus planos de forma que até o crime mais hediondo possua um ar de sofisticação, ainda que tão reprovável quanto qualquer outro. Há algo nas atitudes concretas e também na forma como são representadas, nas idéias por trás de um assassinato e na postura do criminoso por trás dele, algo que constrói a impressão de que se está assistindo a algo que nem de longe é burro, cru ou amador. Essa é a genialidade de “Hannibal”: Ridley Scott comanda os esforços de uma soturna obra tão centrada em Hannibal Lecter quanto o título sugere, tão sofisticada e elegante quanto ele. Só não tão soturna a ponto de parecer um filme demoníaco e sobrenatural como a capa aparenta.
Estilisticamente, o filme não poderia ser mais adequado ao personagem. Seu ritmo, tom, atmosfera e fotografia expressam a essência de que tipo de pessoa é Hannibal Lecter. Trilha sonora, idem. Hans Zimmer faz uma participação graciosa, que quase passa despercebida se suas sutis trilhas de piano não tocassem exatamente nos pontos certos para elevar as cenas a um nível mais alto. Melodias fáceis de decorar cedem lugar para uma música quase ambiente, mas ainda perceptível, às vezes sendo simples como uma composição clássica encaixada num momento perfeito. Tirando um susto desnecessário, o departamento musical nunca desliza na perpetuação do sucesso de Ridley Scott na direção.
As atuações permanecem um ponto alto de seu antecessor. Apenas Julianne Moore pode causar algum estranhamento por não ser Jodie Foster. Ela não é parecida e sequer pintam seu cabelo ruivo de castanho para tentar aproximar um pouco. Isso incomoda mais alguns que outros. Para mim, é só uma leve distração de começo, a interpretação de Moore não demora a surpreender com seu sucesso em se aproximar muito da essência da Clarice Starling original, aqui mostrada em outro estágio de sua vida. O elenco coadjuvante também impressiona com nomes como Giancarlo Giannini, Ray Liotta e Gary Oldman irreconhecível debaixo da maquiagem pesada de seu personagem e, ainda assim, notavelmente bom em seu papel. Quanto a Anthony Hopkins, sinto o prazer de poder dizer que estender os 26 minutos de sua interpretação em “The Silence of the Lambs” funciona magnificamente em “Hannibal”. É possível conhecer melhor o personagem em sua vida dual de indivíduo culto de alta sociedade e assassino. Nada se perde nessa presença mais longa.
Ainda assim, não chega no nível de seu predecessor. É um esforço louvável, só não iguala a conquista artística por seu sucesso estar nos campos altos, não nos mais altos. Consigo entender parcialmente quem não gosta de “Hannibal” por sua abordagem diferente. Claro que sempre haverá puristas desejando mais do mesmo, o que nem sempre é ruim, e por isso existe “Red Dragon“. Existe até gente que detesta o filme por mudar vários elementos do livro original. Outros podem simplesmente não gostar da abordagem mais inclinada ao Terror e da apresentação diferente de um personagem até então só tinha sido visto restringido, sentindo falta da tensão de ver a fera mortífera detrás de um vidro. Talvez a falta de Jodie Foster tenha impactado no rapport percebido entre ela e o doutor? As razões estão por aí. Para todas há um contraponto que pode funcionar ou não. Para mim, essa sempre será uma continuação digna da obra-prima de Jonathan Demme.