“Amores Brutos” marca a primeira parte do que eventualmente veio a ser a Trilogia da Morte de Alejandro González Iñarritu, continuada com “21 Grams” três anos depois e com “Babel” após mais três anos. É também o primeiro longa-metragem do diretor e a única produção mexicana da trilogia, com um elenco inteiramente latino incluindo Gael García Bernal em seu primeiro longa. Marca-se o começo de muita coisa ao mesmo tempo, em suma, até mais do que eu esperava descobrir na pesquisa rotineira antes da escrita. Quem diria que uma produção estrangeira sobre amores e cachorros seria tão frutífera para todos os envolvidos?
A história acompanha três grupos diferentes unido por um acidente de carro e pelos cachorros que tomam lugares diferentes na vida de cada pessoa. Octavio (Gael García Bernal) tem um rottweiler com seu irmão e acaba se envolvendo num círculo de rinha de cães para ganhar dinheiro e ter como financiar seu plano de fugir com uma garota. Daniel (Álvaro Guerrero), por sua vez, também passa por problemas em sua vida pessoal quando decide trocar esposa e família por uma amante, uma modelo famosa e seu yorkshire. Um morador de rua chamado El Chivo (Emilio Echevarría) vive com quatro cachorros num barraco e revela ter mais por trás de si do que aparenta em seu perfil misterioso.
“Amores Brutos” apresenta um conceito de narrativa dividida em seções interligadas por elos sutis e ao mesmo tempo sólidos, identificáveis sem muito esforço, e impressiona por trabalhar seus temas usando algo simples como a presença de cães na vida dos personagens, por exemplo, cuja presença serve como um coadjuvante inusitado que desenvolve a personalidade de seus donos. Frijol, Gringuita, Fortuna, Flor, Richie e Cofi dificilmente são o que se chamaria de personagens de uma obra qualquer, servindo no máximo como uma aparição especial no estilo do yorkshire de Audrey Hepburn em “Funny Face” e, no entanto, possuem uma importância narrativa considerável aqui. Se o cão é o melhor amigo do homem, a forma como o homem trata seu suposto melhor amigo diz muito sobre quem ele é. E quando há três grupos de protagonistas com seus próprios animais, há bastante a ser revelado.
Superficialmente, essa é uma história de pessoas que possuem objetivos e obstáculos que as impedem de os alcançar, exatamente como dita o básico de qualquer narrativa. Conflitos de inquietar a mente e tirar o sono colocam os personagens sob pressão constante e os forçam a mostrar um lado de suas personalidades que não se manifesta em situações corriqueiras. Personagens interessantes garantem que esse princípio narrativo funciona adequadamente e fornecem a matéria viva da história, com interpretações fortes fazendo cada papel relevante cumprir seu papel com a assertividade necessária para causar impacto. Essa é a visão, a abordagem de “Amores Brutos” que busca extrair a realidade brutal por trás das situações ao máximo da sensatez e da razoabilidade. É um personagem que demonstra sua obsessão pela mulher alheia a despeito de alguns contratos sociais e tabus; é o egoísmo humano em sua forma mais pura quando seus valores são abalados pelas coisas mais superficiais como a luxúria. Situações pressionadas ao máximo para conseguir resultados intensos sem se deixar transbordar, trabalhar com decisões drásticas, motivações absurdas e resultados chocantes para atingir o espectador com imagens das quais ele dificilmente esquecerá. Seria fácil o bastante elogiar o aspecto explícito das cenas brutalmente gráficas, seu mérito é ainda maior que o choque por conta de todo o contexto.
O único incômodo real em “Amores Brutos” é sua fotografia. Seu uso extensivo de câmera de mão com freqüentes desfoques e movimentos rápidos por vezes parece em excesso, passando do ponto de transmitir uma idéia de tensão e instabilidade e chegando a atrapalhar um pouco a transmissão do conteúdo. É como eu senti às vezes em “Cidade de Deus” quando os movimentos entravam no caminho de uma tomada que poderia ter sido mostrada tradicionalmente sem perda de detalhe. Se a técnica não favorece, melhor não usar. É o que eu diria também das cores, cuja graduação também é exagerada e deixa várias cenas com um aspecto que nem sendo tolerante com a intenção artística é digerível. Uma cena no hospital ser um verde total só me lembra de “Enemy” e seu filtro de mijo: abundante e malsucedido. O curioso é que o cinematógrafo é Rodrigo Prieto, ainda no quinto trabalho de sua carreira. Mais tarde ele entregaria resultados melhores com o próprio Iñarritu em “Babel” e com outros diretores, enquanto o último firmaria parceria com um dos melhores cinematógrafos de todos os tempos, Emmanuel Lubezki. Todos ganham.
Não sendo dos filmes mais curtos, “Amores Brutos” fecha 153 minutos de duração para contar suas três histórias e por vezes parece passar do ponto. A idéia é longas durações serem justificadas quando há conteúdo para preencher os minutos e não prejudicar o grande todo com o ritmo lento de momentos super-estendidos. E não falta isso aqui. Ao menos nunca percebi cenas e seqüências inúteis ou mais longas do que deveriam, todas pareciam ter algo a contribuir para a construção da história. Só não poderia dizer especificamente se todas são essenciais de fato, se não há alguma que poderia ter ficado na mesa de um editor mais rigoroso buscando o absolutamente necessário para a história. Isso exigiria uma análise bem mais profunda. Por conseqüência, surge a impressão de que o filme não acaba mais; na primeira pausa para ir ao banheiro e tomar refrigerante ainda faltam quase 2 horas, na próxima ainda faltam 45 minutos para o fim. Pode não ser a pior impressão possível, mas também não é boa como quando sequer se pensa em quanto falta para terminar.
Por fim, não diria que é um dos melhores trabalhos de Alejandro González Iñarritu; ou melhor, que já vi outros melhores, pois “Amores Brutos” está bem longe de ser uma experiência ruim. Talvez o melhor paralelo seja o próprio “Babel“, que completa a tal Trilogia da Morte, estrutura-se de forma similar e até possui um nível de sucesso comparável — ou seja, dei a mesma nota para os dois. Só os detalhes mudam, os pontos fortes são outros e os fracos também. O lado bom dessa experiência em questão é a ligação muito mais orgânica entre os arcos narrativos e até entre os temas, como os cachorros funcionam como elo tanto literal quanto simbólico e também metafórico ao emprestar o sentido da expressão “mundo cão”. Mais polimento na parte estética sem dúvida faria a diferença para melhor.