Normalmente não gosto de fazer isso. Faz um bom tempo que assisti a “Funny Face” e decidi escrever uma análise, só que a segunda parte não havia acontecido até agora. A sorte é que a postergação não durou tanto quanto “The Texas Chainsaw Massacre”, que está há desde 23 de janeiro de 2018 nos rascunhos esperando para ser escrito. Bem, o que resta é um exercício de memória de tentar resgatar os pontos altos e os poucos baixos da experiência do primeiro musical estrelado por Audrey Hepburn. E com quem isso acontece? Nada como uma estréia ao lado de uma lenda do gênero, Fred Astaire.
A revista de moda Quality busca se reinventar. Falta um novo rosto para a revista se transformar e voltar com tudo para os olhos do mundo da moda. A editora-chefe, Maggie Prescott (Kay Thompson), busca alguém que seja bonita e intelectual, uma impressão que as modelos de sempre não estão conseguindo alcançar. Um rosto bonito com expressão séria não funciona para Dick Avery (Fred Astaire), o fotógrafo, que decide mudar o cenário para uma loja de livros no centro da cidade para ver se isso resolve. O que ele inesperadamente encontra é uma beleza introvertida em Jo Stockton (Audrey Hepburn), a menina que trabalha lá. Ele propõe que ela seja o novo rosto da revista, que só aceita porque isso a leva ao lugar de seus sonhos, Paris.
E não é que Audrey Hepburn se sai extremamente bem em acompanhar Fred Astaire? Isso já havia sido dito antes quando foi dito que ela aprendeu surpreendentemente rápido as coreografias e se esforçou bastante para não fazer feio diante do dançarino, que foi chamado para estrelar como condição para ela participar do projeto. Ver isso ao vivo foi um tanto mais impactante, como se pode imaginar, até porque não é o comentário do gênero. Debbie Reynolds também recebeu a mesma graça quando estrelou em “Singin’ in the Rain” ao lado de outra lenda, Gene Kelly, sendo elogiada pela competência em acompanhar seus companheiros. Sendo justo, há uma pequena diferença entre esses dois casos porque Hepburn não se mostra exatamente uma cantora nata. Nem ruim, vale dizer. Talvez apenas não boa o bastante para a Warner Bros. a deixar usar sua voz mais tarde em “My Fair Lady“. Isso é um exagero. Em nenhum momento sua cantoria chega a incomodar, pensar em dublagem, então, nunca passou pela cabeça.
Faz pouco sentido porque os números musicais nem sempre são exibições solo de voz. Muitas vezes há uma produção mais complexa envolvendo outros atores, em primeiro lugar, o que confere uma pressão menor no indivíduo de carregar a canção com sua voz; a musicalidade e a intonação fazem toda a diferença no tipo de música de cinema, a qual às vezes funciona como uma conversa descontraída ou uma série de frases pronunciadas com flexão cômica. É isso que acontece muito em “Funny Face. Vários números funcionam perfeitamente bem sem que a atriz tenha que quebrar paradigmas e derrubar queixos. “Bonjour Paris” é o exemplo perfeito disso: ela depende de três atores demonstrando sua empolgação de estar em Paris; cada um de seu jeito, poucas frases e muita melodia acompanhando uma câmera que não para em sua viagem por diferentes lugares até unir os três no alto da Torre Eiffel. As razões para o sucesso dependem de muito mais do que o vocal individual quando a direção faz toda a diferença na construção de um pedaço conciso e coeso de história e a melodia está sempre ativa mostrando que o show não acabou.
E ela dança. É claro que ela tem que dançar. Seria uma grande perda colocar um dançarino como Fred Astaire no elenco e impedir que ele dance para ficar no nível do resto do elenco. O número solo de Hepburn é um dos momentos definitivos de sua carreira e não surpreendentemente está no pôster e em várias fotos famosas da atriz, as clássicas meias brancas com roupas pretas. Astaire dá o seu show de sempre quando tem oportunidade, aproveitando o resto do tempo para mostrar como ele é bom cantor além de dono de um charme que faz o romance da história funcionar melhor. Mas a surpresa mesmo vem por parte de Kay Thompson como uma personagem que parece coadjuvante bidimensional e aos poucos vem a se tornar mais. Carismática, em primeiro lugar, divertida e uma grande adição ao lado musical de “Funny Face”.
“Funny Face” é mais um filme americano, ou melhor, mais um musical americano glorificando Paris como o paraíso boêmio dos românticos, da arte e da beleza. Sim. Nem vale a pena citar todos os que fizeram a mesma coisa porque são muitos e não vem ao caso. De qualquer forma, a idéia de usar a cidade como destino de uma viagem que dá mais errado que certo na maior parte do tempo funciona como parte da grande confusão que é a trama. Uma confusão boa. Uma confusão divertida. É uma palavra boba levianamente atribuída a qualquer filme que seja razoável o bastante. Aqui ela é usada como um adjetivo sólido de uma obra que faz jus a ela com sua construção de muitos elementos. São os mesmos dos melhores musicais, no final das contas, que não perdem o brilho por isso.
Depois de assistir a obras o bastante com Audrey Hepburn, alguns padrões ficam mais evidentes. Uma das cenas mais marcantes de “Funny Face” é a antecipada transformação de sua personagem no tal novo rosto da revista Quality. Depois de passar o filme inteiro vestida como uma garotinha de subúrbio com um gosto europeu, ela finalmente se apresenta produzida dos pés à cabeça, o pacote completo. Familiar? Praticamente a mesma coisa acontece em “My Fair Lady“, quando após horas de filme ela finalmente se apresenta refinada como uma princesa num baile de gala. Poderia dizer que perde um pouco da graça, mas as cenas são um tanto diferentes e o tema de reinvenção aparece também em “Sabrina“, “Roman Holiday” e até “Breakfast at Tiffany’s“. Cada um faz de seu jeito para evitar uma reciclagem descarada. “Funny Face” não é diferente e traz na forma de um divertido musical sua própria versão da idéia, com o par romântico mais velho e tudo.