É estranho eu lembrar de ter visto “Catch Me If You Can” no cinema. Nem é um filme dos mais apropriados para uma criança que naquele mesmo ano assistia a “Spider-Man” e “Star Wars: Episode II – Attack of the Clones“. O que fazia um rapazinho de oito anos no cinema vendo Leonardo DiCaprio no mais novo trabalho de Steven Spielberg? Não sei, mas essa é a prova de que sou cinéfilo desde pequeno. E, sim, a frase anterior é sarcástica. Mais curioso é que só lembrava da cena com os aviões de brinquedo na banheira. Mesmo assim, sempre disse que o filme é bom. Se vale de alguma coisa, a impressão de quase 20 anos atrás se confirmou e a obra não envelheceu nada em todo esse tempo, permanece um dos trabalhos mais formidáveis de Spieberg mais recentemente. Ou melhor, se quase 20 anos puder ser considerado recentemente.
Frank William Abagnale Jr. (Leonardo DiCaprio) ainda está no colégio quando sua vida começa a desmoronar sobre si. Seu pai, Frank Abagnale Sr. (Christopher Walken), é enterrado por problemas com a Receita Federal e acaba tendo de se mudar com a família para um lugar menor, logo sendo abandonado pela esposa e colocando o filho na situação mais difícil de sua vida. Sem casa nem família, o jovem busca uma alternativa usando sua inteligência para se tornar um dos maiores falsários da história dos Estados Unidos.
É seguro dizer que não lembrava de absolutamente nada mais além da cena da banheira. A experiência foi quase uma novidade, exceto pela sensação déjà vu constante, praticamente como ver pela primeira vez sem ter que reavaliar tudo sob novos filtros e padrões de qualidade. “Catch Me If You Can” foi curioso porque sempre tive para mim a certeza de que era bom. Sem me arriscar a falar sobre ele a fundo, claro, nem poderia dizer qual minha cena preferida porque só lembrava de uma, então acabou sendo uma confirmação agradável de que eu tinha razão todos esses 18 anos. De fato é uma obra muito certinha, qualidade típica dos melhores trabalhos de Steven Spielberg que não dão margem para críticas nem no elenco, nem no roteiro, nem na direção e muito menos na trilha sonora.
Pois é, este é um dos casos relativamente raros em que a música me chama a atenção o bastante para me fazer comentar antes de qualquer outra coisa. Faz sentido, já que “Catch Me If You Can” começa com o tema principal de John Williams introduzindo o espectador com uma melodia que exclama tudo o que o filme representa. Até me pego numa falta de palavras específicas para descrever como a música consegue ser tão precisa em capturar a essência da obra e estabelecer tom já nos primeiros segundos, só consigo pensar que é reflexo de sua excelência conseguir ser um representante especialmente fiel de estilo. É escutar e sentir a dinâmica da história: uma perseguição de gato e rato com um tom lúdico, nunca caindo na chacota de parecer uma piada para o espectador. Permanece a aparência de que tudo é um jogo, mas como todo bom jogo há os momentos tensos e quando as pessoas decidem jogar sério.
E nesse jogo, quem joga mais sério do que qualquer um é o Agente Especial Carl Hanratty de Tom Hanks. Essa, sim, foi uma informação deletada da memória sem mais. Em todo esse tempo, nunca me passou pela cabeça a recordação de que o personagem e a atuação de Hanks tinham sido tão marcantes numa história que claramente não é centrada nele. Os céticos dirão que é Tom Hanks sendo ele mesmo e têm razão em certo nível porque o papel não traz uma personalidade das mais excêntricas. Pelo contrário, Hanratty é um cara dos mais comuns e até um dos mais chatos de tão comum, com “Catch Me If You Can” acusando-o diretamente de ser extremamente bitolado. O lado interessante é que isso funciona melhor quando há alguém mais esperto envolvido para fazer esse homem sério ser trouxa às vezes, um jovem para afrontar a autoridade do velho quadrado até que os dois inusitadamente encontram território comum entre suas personas opostas, um aprofundamento da relação que faz muito pela tridimensionalidade do longa.
Leonardo DiCaprio não poderia ser outra pessoa além do jovem desordeiro que vive sob as próprias regras e goza de luxos e excessos e poucas preocupações. Se parece familiar, é porque DiCaprio interpreta seu papel clássico de playboy sem limites, sendo até engraçado o catálogo da Amazon Prime colocar “Catch Me If You Can” perto de “The Wolf of Wall Street”, cujo Jodan Belfort poderia ser uma versão mais velha e da bolsa de valores de Frank, ambos conseguindo dinheiro de forma ilícita e fazendo o que querem sem freio algum. A única diferença é que DiCaprio causa uma impressão bem mais modesta com sua performance no primeiro caso. Talvez os anos de experiência sendo um playboy na vida real tenham o ajudado no outro papel.
“Catch Me If You Can” é em muitos sentidos o filme que satisfaz os desejos secretos da audiência ao mostrar tudo aquilo que muitos querem e alguns jamais terão. Mas é um caso especial, diferenciado dos filmes de gângster e as histórias com adultos porque, bem, Frank Abagnale Jr. alcança tudo isso antes dos 19 anos. E ainda há mais a ser visto na grande farsa, algumas ironias como a inocência de uma nação enganada por um indivíduo ainda não desprovido de sua própria inocência; alguém com tudo nas mãos não sabe o que fazer porque não teve muitos anos para esmerar sua ganância. Isso abre portas para o desenvolvimento emocional de personagens em um roteiro dinâmico. É justo no lado mais pessoal que liberdades criativas são tomadas e o filme se distancia dos fatos. Felizmente, toda a parte extraordinária dos planos mirabolantes e do sucesso de Frank de enganar meio mundo é verdadeira, por mais que não pareça. Melhor que enriqueçam o lado mais ordinário mesmo.