A tradução literal do título polonês de “Não Amarás” seria como em inglês, “A Short Film About Love” ou algo próximo de “Um Filme Curto Sobre Amor”. Por outro lado, o título oficial tem mais a ver com o conceito original por trás da obra. Em 1989, Krzysztof Kieślowski lançava “Dekalog”, uma minissérie de televisão baseada nos Dez Mandamentos da Bíblia. Dez episódios de uma hora, cada um envolvendo um dilema moral relacionado ao mandamento. O sexto episódio trazia uma base: “Não adulterarás”. Em outras palavras mais bem adaptadas ao conteúdo da obra, o resultado é “Não Amarás”. Kieślowski não muda o foco literal do texto para corromper o ideal original ou ilustrar sua visão sobre o que deveria ser, mas explorar o lado não tão óbvio do objeto central do mandamento, o amor.
As coisas estúpidas feitas por amor. Quem nunca fez uma tremenda besteira de resultados desastrosos que parecia absolutamente lógica na hora? Existe algo a respeito desse sentimento que faz as pessoas terem as idéias mais extraordinárias… e outras apenas ordinárias que pareciam ser algo mais. A motivação mexe com algo na essência do indivíduo, desperta um incômodo contínuo que diz que alguma coisa deve ser feita, qualquer coisa, para pelo menos chamar a atenção daquela pessoa com residência permanente em seus pensamentos e que nem sabe que o cortejador existe. Pode ser um bilhete escondido no caderno, pedir o caderno emprestado para ter algum assunto, esperar a pessoa começar a arrumar as cosias para entregar a prova e sair junto da sala ou mandar flores para comunicar que, sim, você tem interesse nela. Demora alguns anos para afugentar essa vontade de estragar tudo com boas intenções. Mesmo assim, vez ou outra ela aparece de forma sutil para lembrar que ainda existe.
E daí? Essa é uma análise de cinema, não uma válvula de escape de um crítico querendo falar sobre amor. A questão é que é “Não Amarás” desperta exatamente esse tipo de pensamento. Sua história é a de um rapaz que faz essas exatas mesmas coisas com a melhor das intenções, atitudes que poderiam e freqüentemente são consideradas reprováveis porque são vistas de fora, por gente que não entende. Entende o quê? É fácil o bastante dizer que boas intenções ladrilham o caminho para o inferno ou que atitudes são atitudes. Sempre há um outro lado da história, invisível até que o indivíduo se pegue tendo essas mesmas idéias mirabolantes por causa do amor. Se não isso, “Não Amarás” é uma ótima chance de estar no lugar de alguém que ama e não sabe amar, ama e não sabe comunicar, ama e não sabe o que fazer.
Tomek (Olaf Lubaszenko) é um tímido rapaz de 19 anos. Sua vida de poucos amigos se resume a trabalho e casa, morando com sua madrinha (Stefania Iwinska) no quarto do filho dela enquanto este passa um período longe de casa. O trabalho traz poucas emoções no balcão do correio. Em casa a história é outra. Tomek passa seu tempo livre em frente à janela, não lendo nem estudando, mas observando com uma luneta a mulher que mora no prédio da frente, Magda (Grazyna Szapolowska); vendo o que ela faz cada momento de suas noites calmas e adorando a imagem dela que nasce na mente do rapaz.
O conceito prático de não amarás é relativamente simples. Um rapaz com uma luneta observa a vida de uma outra pessoa e se envolve em sua vida mais adiante, inesperadamente até. O primeiro exemplo similar é “Rear Window”, sem surpreender ninguém. James Stewart se recupera de uma perna quebrada e passa a observar seus vizinhos até que suspeita que um assassinato ocorreu no apartamento da frente. “Não Amarás” é até mais simples por envolver não mais do que três personagens, sem esposa nem massagista nem outros vizinhos espionados. É apenas um garoto com um interesse: observar a mulher diante de si, apreciar sua vida e preencher os espaços da personalidade que ele desconhece. Ele não fala nada nem tem malícia, pois mal sabe o que está fazendo, na verdade.
Enquanto alguns casos podem conquistar pelos detalhes, “Não Amarás” conquista pela simplicidade. De fato é um filme curto com seus 86 minutos e premissa direta ao ponto. Há a observação primeiramente. Tomek é de poucas palavras e não se pode extrair muitos significados por trás de sua atitude exceto por um: não há maldade no ato. Ainda falta muita coisa até chegar na discussão a respeito de atos incomuns e conseqüências inusitadas, então não se pode extrair muito de uma situação em que o conflito, por assim dizer, tem as duas partes separadas por dezenas de metros e pelo desconhecimento de uma em relação a outra. É claro que em algum momento algo diferente teria de acontecer, quando a coceirinha reaparece e compele a pessoa a fazer acontecer aquilo que não ocorre espontaneamente. Honrando sua qualidade da simplicidade, o roteiro de “Não Amarás” nunca busca o extraordinário dessa situação relativamente possível, embora incomum.
Seria óbvio o bastante se render ao clichê e desenvolver a história de modo que o incomum leve o espectador ao reino cinematográfico da fantasia real ou da realidade romantizada. É de se pensar que o protagonista teria mil e uma coisas pra falar para a moça, precisando apenas de uma chance para dizer tudo ou metade disso e finalmente a conquistar. A idéia do encontro é válida, ao passo que seu desenrolar traz o toque parcimonioso que permeia a essência de “Não Amarás”. Krzysztof Kieślowski nunca deixa sua história decolar e está tudo bem. Ir para mil lugares nem sempre é necessário, até porque isso não significa que falta desenvolvimento na trama. Há um trajeto bem claro. De uma janela até a outra, de um apartamento ao outro. Tudo dentro dos conformes da realidade banal e da magia a ser encontrada nela.
Krzysztof Kieślowski realiza aqui algo que já havia feito em outras obras suas, mas que merece crédito de qualquer forma porque não se trata de um feito pontual, especificamente ligado a essa história. Sua direção não é complexa. Assim como o roteiro e sua execução sublime não dependem de grandes viradas, sua direção conversa com o espectador através de movimentos sutis e bem ponderados, com função clara de mostrar aquilo que deve ser visto. Até mesmo a técnica mais chamativa de “Não Amarás” pode ser resumida a uma troca de ponto de vista. Básico assim. E totalmente funcional. Assim como a falta de palavras e de respostas muitas vezes diz muito, especialmente aqui, as performances seguem a mesma tendência no retrato de algo que todos talvez já viveram em algum ponto da vida e em alguma intensidade; senão, talvez seja a oportunidade de ouro de compreender melhor o que se passa por trás de atos questionáveis inspirados por intenções de uma pureza quase infantil.