Certa vez ouvi falar que os “Beatles” haviam ganhado um Oscar. Não sabia se era sério ou como reagir exatamente, pois não bastava ser a maior banda de seu tempo e uma das mais influentes da história da música, eles também haviam vencido o maior prêmio da indústria do cinema. Tudo bem, eles tiveram sua participação nessa área com “A Hard Day’s Night”, “Help!” e outros, mas não é uma parte substancial de seu trabalho. Isso pode levar a uma discussão sobre a relevância e o funcionamento da categoria “Melhor Canção Original”, se não é uma forma de dar a oportunidade de músicos ganharem Oscars por fazer… música. Esse não é o ponto. Foi “Let It Be” que deu tais prêmios ao grupo, trouxe algumas canções do último álbum pela primeira vez e, mesmo assim, nunca recebeu um tratamento respeitável além do cinema.
O filme acompanha sessões de ensaio e gravação do que deveria ser o próximo álbum da banda. Em janeiro de 1969, os “Beatles” se reuniam para gravar um material diferente daquilo que eles vinham lançando ultimamente, canções de volta aos básicos sem truques de estúdio, sintetizadores e efeitos sonoros diversos. Seria guitarra, bateria, baixo e vocal. Embora gravado antes de “Abbey Road”, essas sessões viriam a ser “Let It Be”, o último disco de estúdio do grupo gravado em clima de descontração e até algumas desavenças. É um registro oficial dos últimos meses do Fab Four e a primeira vez que eles apareciam como eram, em um documentário ao invés de uma história fictícia.
Por que, então, um documentário de certa importância só saiu uma vez no começo dos Anos 80? Foi um lançamento de tiragem e qualidade baixa, restando hoje apenas versões bootleg na internet. A pergunta mesmo é: por que nunca foi relançado em DVD e Blu-Ray? Talvez a reputação de “Let It Be” responda essa pergunta. Conhecido como um dos poucos materiais que mostram a banda em momentos não tão amigáveis, sem os terninhos e os cortes de cabelo combinando, sorrisos abertos e comentários engraçadinhos na ponta da língua, ele aparentemente tem sido esquecido de propósito. Houve tentativas de remasterizar e relançar, mas por algum motivo elas sempre acabavam dando errado, vetadas por um ou outro Beatle enquanto os anos passaram até somar quase 50 desde o lançamento original. Só que ele nunca foi esquecido enquanto circulava pelo submundo da cultura popular. Isso porque a razão do boicote é a mesma que manteve a obra viva: aparentemente mostra o final deselegante da banda mais queridinha do mundo.
Já tendo ouvido falar do documentário algumas vezes e sempre lembrando dele por esse fato, demorei para ir atrás até descobrir toda a história por trás do aparente boicote e das poucas cópias de baixa resolução circulando na internet. Isso despertou a curiosidade mais ainda. Seria o conteúdo tão controverso assim? Um funcionário da Apple Corps disse exatamente isso e que o conteúdo continua despertando problemas antigos. Quais? Dois dos Beatles faleceram, restando dois que aparentemente nunca tiveram muitos atritos. Então foi anunciado que Peter Jackson dirigiria uma nova versão de “Let It Be”, na época sem deixar claro se seria uma restauração fiel ao original ou uma recriação completa. Já acendeu o alerta de que talvez mudassem o conteúdo para deixar os ânimos mais altos, ou seja, alterar o tom para conservar a imagem pristina dos Beatles como ícones da cultura britânica.
“Eight Days a Week” é produção da Apple Corps e seguiu mais ou menos esse caminho, falando dos anos de tour com uma atmosfera leve e jovial. Por isso decidi correr atrás do documentário original, mesmo em qualidade horrível, para saber do que se trata tanta controvérsia e para ter parâmetro quando a nova versão for lançada. O veredito é que… não é controverso assim. Eu esperava um pouco mais de desavenças, clima pesado e descontentamentos dentro do estúdio, talvez ver os membros da banda discordando sobre os caminhos que essa deveria seguir e como isso poderia ser precursor das carreiras solo dos membros. Não que eu desejasse isso também. “Let It Be” não é pior por ter poucas intrigas de forma alguma. Há exatamente uma cena de desentendimento e nem é dos mais feios. Outras cenas mostram os integrantes pouco empolgados, não muito entusiasmados pela idéia de estar ali e às vezes deixando transparecer um tipo de indiferença, um desinteresse pelas idéias dos outros.
Isso não é mais do que se esperaria de qualquer pessoa que faz algum trabalho há tempo o bastante para perder a empolgação inicial. “Let It Be” ficou tanto tempo oculto que o mito se tornou maior do que a realidade. Os comentários mais freqüentes sempre falam do clima pesado entre os integrantes e o choque de ver aqueles que sempre pareciam ser os melhores amigos do mundo estarem de cara fechada. Não é tudo isso. Um relançamento oficial, sem modificação alguma, dificilmente atrapalharia a opinião popular sobre o grupo significativamente. Se Lennon dizer que eles eram mais populares que Jesus não matou a banda, não foi e não seria esse documentário a fazer isso.
De resto, o que se pode esperar de “Let It Be”? É uma proposta crua e direta ao ponto, sem uma produção multimilionária proporcionando efeitos especiais, animações, cenários complexos e cobertura cinematográfica ampla. E está tudo bem. O diretor Michael Lindsay-Hogg trabalha como um cineasta invisível no meio das sessões no que vem a ser um extenso making of da criação musical dos “Beatles”. Isso acarreta algumas coisas como o não aprofundamento no processo criativo de cada um ou depoimentos de qualquer tipo, como algum membro explicar o que propõe com o álbum ou alguma canção, porém não é um problema porque o conteúdo se sustenta por conta, especialmente com o final mostrando o famoso show no telhado elevando muito a obra. Basta saber o que esperar para não julgar mal de acordo com outros moldes ou sua reputação.