Não, esse não é um artigo sobre a vida pessoal de Roman Polanski, o que ele fez nos Anos 70 e se isso deve ser separado de sua carreira profissional ou não. É cansativo ver qualquer filme novo do diretor evocar a mesma discussão de novo, cada crítico de cinema e jovem escritor encontra uma nova oportunidade de demonizar ou defender o homem. “O Oficial e o Espião” é seu filme mais recente, uma produção francesa que recentemente venceu o prêmio de Melhor Diretor no César e restaurou a ira do mundo sobre o cineasta. Ou melhor, a mais recente vitória, já que ele venceu todos prêmios de direção a que foi indicado no César, incluindo um recente em 2014. Irônico.
Em 1894, o exército francês se reúne para uma cerimônia formal sem nenhuma intenção de homenagear alguém ou celebrar. A razão para o evento é desonrar Alfred Dreyfus (Louis Garrel), acusado e condenado de ser um espião para o Império Alemão. Sua patente, condecorações, honras e liberdade são tiradas dele, que é encaminhado à Ilha do Diabo para cumprir pena. Pouco tempo depois, Georges Picquart (Jean Dujardin) sobe ao cargo de Chefe de Inteligência do exército e decide revisitar a investigação de Dreyfus como uma de suas primeiras atividades, descobrindo no processo que um grande erro pode ter sido cometido.
Houve um momento curioso durante a cabine de imprensa, depois de mais ou menos uma hora e meia do início: a audiência reagiu ruidosamente à menção do nome Émile Zola. Quem entende de história do cinema reconhecerá o nome por causa de um dos primeiros vencedores do Oscar de Melhor Filme, “The Life of Emile Zola”. Mesmo os que não tiveram a oportunidade de assistir, como eu, podem reconhecer o nome e perceber a conexão entre duas obras compartilhando a mesma história. Um pouco de pesquisa mostra que não é o que acontece. O fato de Zola aparecer mais perto do final do que do começo é um indicativo de que as duas exploram tramas diferentes, com “O Oficial e o Espião” sendo mais focado nas implicações do processo de Dreyfus dentro do próprio exército francês.
E há muito conteúdo a ser explorado. O roteiro impressiona por não se limitar apenas à investigação da corte marcial e se ela foi justa como deveria ter sido para chegar no nível de reunir centenas de pessoas em praça pública e humilhar o indivíduo antes de enviá-lo para uma das piores cadeias do mundo numa ilha no meio do nada. Isso é um ponto, talvez o mais importante de todos, não o único. As conseqüências desse evento levam para outros lugares igualmente interessantes ou mais. O conflito de se desenvolve para além de um problema administrativo ou legal, uma investigação baseada em um mal-entendido ou algo assim. Foi um erro crasso embasado em desvirtude. Tudo o que vem depois é apenas insistência no erro em níveis não menos assustadores por estarem adornados de formalidade e etiqueta. O anti-semitismo, por exemplo, impressiona por ser trabalhado a fundo em uma época diferente daquela que se espera, décadas antes da perseguição aos judeus pelo Terceiro Reich e bem similar por demonstrar uma lógica burocrática conveniente para os agressores, abuso institucionalizado ao vivo e em cores.
Uma parte respeitável do brilho de “O Oficial e o Espião” vem da competência por parte do elenco na interpretação de seus papéis, pequenos ou grandes. Vai desde o oficial gordo e incompetente no estilo do antagonista do Zorro, o Sargento Gonzales, até outros que escondem sua imoralidade por trás de faces mais refinadas como a soberba e a hierarquia. Jean Dujardin traz o protagonista Jacques Picquart em uma abordagem surpreendentemente moderada, qualidade que também pode ser atribuída ao resto do elenco por não haver papéis exagerados nem escritos para serem superlativos. Colocando dessa forma, é até curioso pensar como é popular e dominante o conceito de um personagem ser escrito para ter cenas grandes e se expressar mais intensamente que o resto. Há uma certa uniformidade na forma como todos se portam porque é assim que as pessoas se comportam em público no final das contas, com variações mais sutis para cima ou para baixo de acordo com cada personalidade. Em um ambiente militar, é de se pensar que a tendência seja manter ainda mais uma homogeneidade.
Esse é um dos toques especiais que fazem do trabalho de Roman Polanski um diferencial mesmo hoje, com ele em seus 86 anos. Extrair o máximo do elenco e trabalhar o papel em nível sentimental, íntimo e pessoal com os atores é louvável e lógico o bastante mas também é o óbvio — ainda que desconhecido por vários diretores. A idéia de criar um estilo de interpretação consoante com o contexto geral é potencializar a criação de um cenário convincente e levar a representação da história para além do destaque ao indivíduo e das composições de cena dinâmicas. Claro, tudo isso ainda existe e é apreciável. Não é como se todos os atores interpretassem o mesmo papel ou como se houvesse mau uso de dezenas de atores uniformizados em cenários históricos. Visualmente, “O Oficial e o Espião” é uma beleza, uma visão contrária da Paris alegre e romântica de sempre.
Os problemas são poucos. Notáveis o bastante para prejudicar o todo, mas não em quantidade para qualificar “O Oficial e o Espião” como falho. As imersões em campos narrativos complicados trazem isso à tona, quando as minúcias contextuais se perdem e apenas os significados maiores ficam claros. Só se sabe ao certo a proposta geral da cena ou das motivações maiores dos personagens. A narrativa desliza e deixa o espectador um pouco perdido sem ir longe demais e deixar algum ponto importante inexplicado, prejudicando a compreensão do grande enredo. Outra questão é o ritmo, que por vezes se mostra cansativo e, curiosamente, piora mais ou menos quando a trama fica confusa. A constância de uma trama baseada em eventos de baixa intensidade eventualmente cobra seu preço quando o cansaço aparece e passa a competir pela atenção do espectador.
Além de ser naturalmente para alguns uma oportunidade para discutir o que Roman Polanski fez em 1977, há sugestões de que ele tenha usado “O Oficial e o Espião” como analogia à sua vida, ou seja, um filme sobre injustiça e condenação indevida como paralelo de um diretor freqüentemente atacado e perseguido. Então é inevitável ver o longa ser acompanhado de discussões morais sobre o passado do diretor. Se ele realmente tentou usar sua obra para proclamar inocência ou denunciar os exageros por parte dos perseguidores em seu encalço há mais de 40 anos, não importa de fato. A história de Alfred Dreyfus, embora já conhecida e retratada outras vezes no cinema, retorna nas mãos de um diretor que faz dela mais uma adição louvável ao seu repertório.