Este foi um ano particularmente fraco nas categorias de Melhor Atriz. Dentre as 10 indicações, faltou aquele papel para chamar a atenção como um vencedor, como aquele que marca a carreira da pessoa para sempre ou nem isso, apenas se colocar acima como uma performance ímpar e não apenas boa. Para que não se entenda isso como uma generalização sobre todas as indicadas serem medianas, são apenas algumas que poderiam ser chamadas de esquecíveis ou, como o popular diria, colocadas ali apenas para preencher espaço. “Judy” e Renée Zellweger é como “Marriage Story” e Laura Dern: ambos venceram por se saírem um pouco melhor que a concorrência mansa. E quando tal performance é o ponto alto do filme, pode-se imaginar por que essa foi sua única indicação.
A carreira de Judy Garland (Darci Shaw) explode cedo com o eterno papel de Dorothy Gale em “The Wizard of Oz“. Assim nasce a imagem da garotinha conhecida em cada casa do país, a atriz de aparência familiar e comum como uma garota qualquer do bairro, dificilmente o que se diria de outras grandes da época como Joan Crawford, Rita Hayworth e Vivien Leigh. A preocupação do estúdio com a aparência da garota deixa uma marca que perdura até a meia idade, quando Judy (Renée Zellweger) enfrenta problemas financeiros, pessoais e profissionais. Todos se empilham em suas costas, que ameaçam ceder a qualquer momento, até que surge uma oportunidade de ouro em Londres: uma série de shows lotados em em um clube de alto nível.
A história de Judy Garland é uma das mais tristes que já li. Mesmo a versão resumida da biografia do IMDb foi o bastante para expressar como foi uma vida praguejada por infelicidades e assombrada por traumas até o fim. Sua ascensão ao estrelato aconteceu durante o auge do sistema de estúdio hollywoodiano, quando havia um método quase fabril de fazer as coisas funcionarem e até uma moralidade predefinida para todas as histórias, de pouca a nenhuma margem para mudar qualquer coisa. Os chefes dos grandes estúdios mandavam a torto e direito nas vidas de seus empregados, especialmente preocupados com os atores que os representavam nas telonas. Suas roupas deveriam ser consoantes com a imagem desejada pela chefia, os penteados escolhidos, as companhias e lugares freqüentados deviam funcionar juntos para maximizar a publicidade e os ganhos eventuais dos filmes.
Em um espaço controlador como esse, a jovem Frances Ethel Gumm cresce como uma queridinha por render muito dinheiro aos bolsos da MGM. Exceto que seu nariz é arredondado e achatado, suas medidas são um pouco grandes, seus dentes não são dos melhores e ela não é nem baixa o bastante para papéis infantis, nem alta o bastante para papéis adultos. Maquiagens, roupas, dietas excessivas, remédios e pressão psicológica tentavam manter a garota dentro dos conformes em detrimento de qualquer noção de qualidade de vida. E isso é apenas o começo de sua vida. “Judy” não foca apenas no último ano de vida da atriz, pois também explora algumas cenas dessa juventude nos estúdios, tentando estabelecer o mesmo paralelo que eu ao contextualizar a situação e mostrar quando as marcas mais profundas foram desferidas.
Então se apresenta um dos grandes problemas da história de “Judy”: seu último ano de vida é apenas o clímax de uma vida inteira maculada. Apenas mostrar o ato final é separar partes codependentes que sofrem sem a outra. Talvez uma vida inteira seja demais para as meras duas horas de um longa-metragem, mas não é esse o ponto, pois o roteiro reconhece a condição e insere trechos da juventude com Darci Shaw interpretando a jovem Garland. Não significa que é suficiente. Ainda parece que falta espaço para Shaw demonstrar mais formas de uma infância corrompida, esmagada e deformada pelos interesses externos, talvez indo até mais longe nos anos para mostrar alguns dos maiores crimes cometidos contra a atriz, aquilo que não deixaria dúvida sobre a origem do sofrimento mostrado mais tarde.
Claro, nunca é tão simples quanto estabelecer uma relação de causa e conseqüência, mesmo porque isso seria superficial à beça. Complexos e comportamentos viciosos nunca surgem por causa específica, facilmente rastreável; seu nascimento talvez se dê em um ponto específico, ao passo que seu desenvolvimento depende de uma vida inteira alimentando crenças e reforçando comportamentos angulares. O ponto é que havia margem para desenvolver esse lado da história de forma que ele reforçasse o estado em que Judy se encontra na outra parte do filme.
Parece que falta algo mais quando se vê uma mulher entregue às crises de melancolia e à vodka com gelo, chorando por não se sentir apta a dar conta do show ou causando todo tipo de problema, de chegar atrasada a exagerar na bebida e não conseguir se apresentar direito. Sim, fica bem claro que ela é o que se chama de pessoa de alta manutenção. A diferença entre esse caso e os outros envolvendo egos gigantescos é que há um plano de fundo por trás do comportamento problemático e isso nunca é explorado a fundo. Nem mesmo os shows, o elemento central do período escolhido pelo roteiro, são destaques. E não é a voz da atriz ou o playback safado, raramente senti que a obra tratava as apresentações com importância e quando o fazia, entregava-se ao melodrama piegas como nas cenas finais.
Enfim chega o ponto mais falado de “Judy”: a atuação de Renée Zellweger. É o alto da experiência, nada como um aspecto que redime todos os outros e eleva a obra bem acima de seus problemas. Ela é muito boa na representação do estado mental e físico fragilizado de uma atriz em seus últimos respiros. O último ano de vida de Garland trazia consigo o limite de um estilo de vida vultuoso até que ela finalmente se desgastou por completo, como disse Ray Bolger. Zellweger entra na mentalidade sofrida e frágil de uma mulher de 47 anos ainda infantil como Dorothy em alguns pontos. No entanto, falta algo. Exigir da atriz a tremenda voz que fez a carreira de Garland seria irreal e nem é esse o propósito, a questão é que em vários momentos eu escutava Renée Zellweger por trás da caracterização e conseguia racionalizar que era ela imitando alguém ao invés de enxergar a personagem Judy Garland em sua história. Seja pelo jeito particular de falar da atriz principal — provavelmente — ou outra coisa, algo denuncia a existência da ilusão.