Não foi uma vez só que falei que histórias sobre padres e freiras correm o risco de serem chatas. É um julgamento meio leviano opinar sobre a qualidade pelo conteúdo sem mais, o livro pela capa, como as pessoas que vêem qualquer coisa minimamente próxima do chamado filme culto e já dizem que é chato. Por outro lado, o risco está ali: normalmente os elementos narrativos são crenças, dogmas, rituais, rotinas calmas e costumes rígidos. Dois deles vêm à mente: “Silence” e “The Nun’s Story“. Por esses e outros motivos, ambos por vezes se mostram enfadonhos ou pouco engajantes. “The Two Popes” deveria fazer o mesmo por ter o mesmo tema, em teoria, afinal são apenas dois membros do clero conversando durante pouco mais de 2 horas.
A morte do Papa João Paulo II traz a atenção do mundo ao Vaticano quando a eleição para um novo Papa coloca os cardeais a discutir e o povo a esperar pela fumaça branca da chaminé da Capela Sistina. Joseph Aloisius Ratzinger (Anthony Hopkins) é eleito como Papa Bento XVI em 2005. Anos mais tarde, Jorge Mario Bergoglio (Jonathan Pryce), o segundo lugar na votação, envia uma carta ao Vaticano pedindo sua resignação como Arcebispo para voltar a focar sua atenção nas pequenas paróquias de seu país. Isso leva a um encontro entre ele e Bento XVI em Roma, onde os dois discutem seus ideais e o futuro da Igreja Católica.
“The Two Popes” foi um dos últimos indicados a que assisti. Pelo mesmo medo de encontrar um filme chato por conta do assunto, adiei bastante aquilo que eu temia ser mais uma discussão interminável sobre virtudes sob uma ótica católica e conservadora, moldada por dogmas. Isto é, falar sobre como a humanidade pode progredir moral e espiritualmente por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre. Basicamente isso. Dois dos membros mais importantes do clero conversando e conversando. Não me pareceu a proposta mais dinâmica dentre as opções, por isso acabei dando pouca atenção e até passando batido pelo fato de que o diretor é o brasileiro Fernando Meirelles, mais conhecido por “Cidade de Deus“.
Acontece que “The Two Popes” tem uma surpresa para quem esperava encontrar tédio. Em seu lugar, há uma história que ironicamente mostra um ótimo senso de humor e dois protagonistas carregando o filme nas costas como o título sugere. Os tais dois Papas são indivíduos completamente diferentes. Os dois enxergam a mesma Igreja com outros olhos e gostariam de levar ela por caminhos que não fazem sentido para o outro. Bento XVI deseja manter algumas tradições milenares, adotando uma postura conservadora para fazer frente ao afastamento da sociedade ocidental das religiões. Jorge Bergoglio, em contraposição, acredita ser possível uma maior flexibilidade sem que haja perda ou corrupção da essência dos valores sustentados pela Igreja. Bem, talvez essa fosse uma oportunidade para identificar o chato da história e o sensato, assim criando uma distinção bem clara entre os dois protagonistas, talvez até um favoritismo por parte da própria obra.
Para não dizer que há uma preferência desproporcional em “The Two Popes”, é razoável afirmar que Bergoglio é colocado sob uma ótica mais favorável que seu companheiro simplesmente pelo fato de que não existe uma cena sequer envolvendo o passado de Bento XVI. Em nenhum momento se mostra quem ele foi nos 78 anos antes de se tornar Papa exceto por alguns comentários o chamando de nazista. Ratzinger foi parte da Juventude Hitlerista aos 14 anos e mais tarde do próprio exército alemão, mesmo com ele e sua família sendo abertamente avessos ao regime nazista. E é isso. Não há cenas mostrando como foram os anos dele dentro da Igreja e quais foram as experiências que moldaram quem ele eventualmente se tornou como Papa. O outro lado goza de diversas cenas de cultos a céu aberto na Argentina, vivências da ditadura e até algumas datando antes da vida dentro do clero, especificamente o momento de decisão de entrar para a Igreja formalmente.
A única coisa que equilibra essa discrepância de retrato é a atuação de Anthony Hopkins. Aliás, o trabalho feito por ele e por Jonathan Pryce são praticamente corpo e alma de “The Two Popes”. O primeiro faz muito pela atenção menor que recebe do enredo ao dar ao suposto conservador ultrapassado senil um ar de maior respeito. Através da performance, ele ganha algumas esferas a mais para sua personalidade, tornando-se um homem de conhecimento e inteligência contrapondo o julgamento leviano de alguns que o consideravam apenas um dinossauro nazista católico. O retrato se aprofunda conforme se enxerga no homem a sabedoria associada a uma posição tão respeitada, suas conversas com Jorge Bergoglio mostrando que seu ponto de vista não é burro e simplista como pode parecer. Por mais que eles enxerguem a mesma coisa de formas diferentes, não quer dizer que elas estejam erradas.
Mais do que isso, é a competências dos dois atores que confere esse ar de respeito e credibilidade às palavras do roteiro além de, é claro, o carisma necessário para fazer o espectador se gostar do personagem em primeiro lugar por algum motivo que seja. E disso não se pode reclamar. Errado ou não, o entretenimento proposto por Bento XVI ao seu hóspede garante uma dinâmica mais interessante do que apenas discutir aquilo que importa; ou seja, eles não ficam o tempo todo falando sobre a resignação de Bergoglio em um tom sério de superior falando com subordinado. Dinâmicas de gato e rato e pequenos conflitos como distrações tornam o grande papo mais legal de acompanhar. No final, isso é o mais importante para evitar que a proposta como um todo seja um desastre. Havia margem para aprofundar a discussão para além de colocar as duas figuras como opostas e representantes do orto e do heterodoxo, da tradição e do progresso? Sem dúvida. “The Two Popes” não ostenta toda a profundidade que poderia, mas também não deixa de fazer um bom trabalho com o que mostra.