“The Other Side of the Wind” é um filme curioso. Sua história de produção é extensa e envolve uma série de problemas que nem as produções mais problemáticas costumam enfrentar, algo que vai além de rixas entre atores e diretores, intervenções de produtores e refilmagens. Começa pelo fato de a obra ter sido gravada intermitentemente entre 1970 e 1976, sem chegar a ser terminada por conta de problemas com direitos autorais restringindo o acesso de Orson Welles ao conteúdo filmado, tudo isso porque a Revolução Iraniana influenciou uma das fontes de financiamento. Welles acabou morrendo em 1985 antes de conseguir terminar o longa, que só veio a finalmente tomar forma em 2018 sob a supervisão de Frank Marshall e Peter Bogdanovich, a única pessoa em quem o diretor confiaria para terminar seu trabalho.
O filme conta a história de Jake Hannaford (John Huston), um diretor de cinema de muito sucesso no começo de sua carreira agora enfrentando problemas com sua última produção. Tentando criar algo totalmente diferente daquilo que fez no passado e do que era considerado padrão, ele recruta o jovem John Dale (Robert Random) e a exótica atriz a quem chama de Pocahontas (Oja Kodar) para estrelar numa história sobre o rapaz seguindo a garota por onde ela vai. Dentre os vários problemas do projeto, o ator principal abandona a produção na metade e o dinheiro pode acabar. Hannaford já nem se preocupa mais, chama os enxeridos e os inimigos junto dos colegas e amigos para sua festa de aniversário de 71 anos, onde pretende mostrar o que foi gravado da obra.
“The Other Side of the Wind” é claramente biográfico ou até metalingüístico. Há margem para uma discussão gigantesca a respeito da obra e suas implicações, os reflexos da vida real inseridos no enredo como matéria bruta e as próprias intenções obscuras do diretor com o projeto para além do óbvio, ou seja, contar uma história usando imagens em movimento. O contexto extracurricular, tudo que há em torno do filme, é grande demais para ser considerado como notas de rodapé. Ou melhor, é como se as notas de rodapé tomassem o maior espaço da página, com mais conteúdo do que o texto original. Os eventos adjuntos ao projeto indicam uma alta probabilidade de ele inteiro, inclusive sua não finalização, ser uma mensagem em si ao invés de algo inacabado por influência externa. A inexistência de um roteiro e o ritmo errático de gravações talvez seja intencional, talvez não.
A verdade é que talvez nem o próprio Orson Welles sabia onde queria chegar, se é que queria chegar em algum lugar em vez de simplesmente encontrar mais uma forma de se auto sabotar e colocar em risco seu futuro ao associar uma produção falha ao seu repertório. Se sua intenção era se desligar da indústria cinematográfica de qualquer forma enquanto exacerbava algumas de suas facetas ridículas, então ele estava mais ou menos no caminho. “The Other Side of the Wind” engloba até mesmo essa possibilidade em sua narrativa ao trazer em seu protagonista um homem no seu último dia de vida, fazendo coisas ilógicas sem razão aparente. É, no mínimo, bizarro como praticamente todos os elementos narrativos relevantes possuem algum tipo de reflexo na realidade do diretor, que, talvez para tirar sarro dos jornalistas metidos a espertos, falava que não se tratava de uma história autobiográfica de forma alguma. Quem sabe esse longa não seja a última coisa ilógica que ele fez em vida, a última pegadinha antes de dar adeus à indústria.
“The Other Side of the Wind” foi montado a partir de centenas de horas de filmagens de períodos diferentes, com atores escalados inicialmente para um papel e depois colocados em outro, além de outros retirados totalmente por terem sido substituídos. Nem todo o material poderia ser aproveitado por essas razões, porém a quantidade bruta já dava margem o bastante para finalizar a proposta básica. Mesmo assim, é visível que este é um trabalho incompleto. Não por falta de coerência, por buracos na narrativa deixando arcos sem sentido, e sim porque é perceptível que o escopo era tão maior do que acaba sendo visto aqui. Alguns pontos cumprem sua função como beats elementares e só, levam a história para frente sem um desenvolvimento, sem uma atenção mais demorada no evento para extrair seu significado a fundo. Com isso, é claro que não se poderia esperar um nível decente de polimento. Se nem todas as peças estão presentes para deixar algo sobrar, não há espaço para esculpir arestas.
O resultado é enigmático, complexo e impressionante. Sua qualidade misteriosa traz à tona sua ambição e como fa idéia fundamental por trás da produção é de uma inteligência e ousadia tremenda. O ponto alto, curiosamente, é o filme dentro do filme envolvendo um homem perseguindo uma mulher por ambientes não exatamente conectados geograficamente. A maestria na reprodução do estilo dos diretores de vanguarda dos Anos 60 chega a criar limites estéticos bem definidos entre os dois arcos. A trama do casal ostenta um nível muito superior de beleza e de complexidade de produção comparado ao estilo documental do arco da vida de Jake, talvez buscando estabelecer uma crítica direcionada ao favorecimento de forma sobre conteúdo das novas gerações ao fazer o mesmo em um arco e aproveitando o enredo mais presente do outro para criticar abertamente o status da indústria naquele tempo. São duas formas completamente diferentes de colocar em ação os talentos de Gary Graver, o cinematógrafo: fotografia colorida em widescreen, cenários chamativos, iluminação extravagante de um lado; formato de tela quadrada, preto e branco com câmeras de mão em 16mm ou 8mm. Infelizmente, tal complexidade temática sugerida denota também como o conteúdo presente não chega lá, não é o bastante para cumprir a promessa que o próprio longa estabelece. E é trágico, pois também é visível que não faltava tanto assim para que houvesse o suficiente para criar um excelente filme ou uma obra prima.
Vale dizer que várias dessas conexões só puderam ser feitas com um conhecimento prévio da história da produção, de todos os 6 anos ou mais envolvendo a escrita, produção, execução e reinvenção da obra. Sem conhecer o contexto, “The Other Side of the Wind” pode soar como um filme ainda mais enigmático e quem sabe até sem sentido, por isso é uma boa idéia conferir “They’ll Love Me When I’m Dead” para compreender o plano de fundo massivo. Costumo partir do princípio que um julgamento de valor, uma análise crítica, pode ser feita mesmo sem levar em consideração o contexto histórico porque uma obra deve poder falar por si mesma, expressar suas idéias e mensagens sem necessidade de informações adjuntas antecipadamente. Esse é um caso diferente. O fato de nunca ter sido finalizado é elementar para a experiência, por exemplo, já que nunca se saberá ao certo se este produto é o que Orson Welles tinha em mente de fato ou se gravaria por mais meia dúzia de anos.