Dois irmãos missionários, Rose (Katharine Hepburn) e Samuel Sayer (Robert Morley) vivem em um pequeno vilarejo no leste da África tentando catequizar os nativos na fé cristã. Passando seus dias entre os africanos, eles freqüentemente realizam cultos para ensinar os caminhos da religião. Então é declarada a Primeira Guerra Mundial e os alemães trazem destruição ao lugar numa tentativa de dispersar e recrutar os nativos para sua força militar. O vilarejo é queimado e o Samuel acaba falecendo, restando nada mais para Rose além de um plano ousado e totalmente insano de atacar os alemães de volta com a ajuda de Charlie Allnut (Humphrey Bogart) e seu barco a vapor, o “The African Queen”.
É comum encontrar entre comentários sobre a carreira de Humphrey Bogart algo sobre seus vários grandes papéis e a eventual vitória por um que não costuma ser colocado entre os melhores. Estes costumam ser o detetive particular de inteligência e ousadia imbatíveis, Samuel Spade em “The Maltese Falcon”; outro detetive, mais humano e humilde sem deixar faltar esperteza, Philip Marlowe em “The Big Sleep”; e, é claro, o charmoso dono do café mais popular da cidade, Rick Blaine de “Casablanca”. Há vários outros dignos de nota, sendo estes três freqüentemente apontados como os grandes papéis da carreira do ator, enquanto “The African Queen” está para o “Scent of a Woman” de Al Pacino: uma vitória merecida, embora considerada como um consolo em função de todos os outros grandes feitos não premiados do passado.
Talvez haja certa razão nisso. “The African Queen” com certeza não é o melhor de Bogart nem melhor que qualquer um destes três mencionados. Trata-se de um filme de aventura ambicioso, gravado em grande parte no coração da África em meio ao calor, ao suor, à poeira e aos insetos, uma produção praguejada pelas condições locais difíceis que deixaram boa parte da equipe doente, com Katharine Hepburn tendo um balde para colocar as tripas para fora entre tomadas. Boa diversão? Sim, nada digno de entrar para a história como um dos pontos altos do cinema americano. Exceto por uma razão: a interpretação de Bogart traz em si algo para manter o espectador atento e cativado pela simplicidade encontrada na personalidade do protagonista.
Ao contrário dos que dizem que pessoas simples não rendem boas histórias porque não são interessantes, “The African Queen” traz Charlie Allnut como alguém que provavelmente seria a pessoa mais básica em vários ambientes. Numa cidade litorânea, ele seria o pescador que fica no canto mais deserto da praia, onde o mar é sujo de óleo das embarcações e nenhum turista passa perto; nas cidades, seria o trabalhador de construção civil que passa despercebido todos os dias por quem acha que suas roupas sujas e modos brutos são o resumo de sua personalidade. O que faz a performance de Bogart se exaltar é, novamente, sua capacidade de transcender papéis que ele mesmo tornou marcantes e nunca os usar como muleta. Trazer variações de um mesmo personagem seria fácil o bastante, assim como alguns atores costumam ser criticados por sempre interpretar a si mesmos em todo papel.
Charlie Allnut não tem absolutamente nada a ver com o charme imediatamente perceptível de Rick Blaine com seu cabelo penteado e o blazer branco dizendo que de todos os bares de todas as cidades de todo o mundo ela entra no seu. Ele passa a maior parte do tempo sujo, toma um duvidoso banho em águas que provavelmente o sujariam mais ainda e, a despeito de tudo isso, mantém um enorme sorriso quase o tempo todo. Despreocupado com as grandes verdades do universo e as complexidades da existência humana, ele demonstra mais prazer em simplesmente guiar seu barco e ter um litro de gim por perto. Talvez o que ele fale não seja tão afiado quanto as palavras de Sam Spade, mas nem por isso é um indivíduo menos interessante. Tornar tal simplicidade em algo atraente é a tarefa árdua que pode também ser chamada de gerar carisma, algo invisível e intocável ao mesmo tempo que imediatamente sensível. A jornada pelos tortuosos rios africanos seria um tanto mais intragável sem o personagem fazendo o espectador quase se sentir à vontade de estar junto dos maus bocados mostrados.
Ele não está sozinho nessa. O papel um pouco menos brilhante de Katharine Hepburn em “The African Queen” traz o complemento necessário para o peso todo não ficar nas costas de seu parceiro de elenco. A viagem não é feita sozinha, afinal de contas, e até começa por uma idéia da personagem de Hepburn. A escolha de uma personalidade um tanto mais acatada e fresca para acompanhar Charlie na viagem torna tudo mais interessante, traz um choque de naturezas indicado ainda no começo do filme numa hilária seqüência de café da tarde, o britânico da elite acompanhado da classe mais baixa, clássica junção de opostos numa mesma situação.
No entanto, a relação dos dois segue por caminhos sinuosos não tão atraentes quanto os desafios literais enfrentados na selva africana. O desenvolvimento narrativo de “The African Queen”, ou seja, a causalidade dos eventos iniciais soa um tanto acelerada e pouco desenvolvida, com algumas coisas acontecendo apenas para levar a trama para frente sem trazer consigo uma boa base. A motivação para Charlie entrar na aventura se mostra quase ausente, maleável demais em um primeiro momento para depois ser justificada com um romance que, embora não exatamente um ponto negativo, também começa do nada, sem uma química preliminar fornecendo um terreno fértil para algo nascer.
“The African Queen” é um filme de aventura com as convenções de gênero esperadas: um caminho a ser percorrido com obstáculos diversos testando os personagens a cada pouco. Dificilmente as cenas de tensão mostradas aqui funcionam bem em comparação com aquilo que o gênero passou a oferecer nas décadas seguintes, com mais ambição de cunho fantástico e outras ferramentas ajudando na criação de cenários desafiadores. Os problemas enfrentados são um tanto mais simples, nem por isso são mal executados ou toscos, atrativos atualmente não tão funcionais que ainda proporcionam uma experiência agradável em sua própria escala.