Há alguns anos havia se tornado fácil acessar o catálogo do Netflix de outros países, então aproveitei a oportunidade para desfrutar da grande seleção de clássicos dos Estados Unidos. Pude assistir a vários títulos respeitados do passado por alguns meses e, naturalmente, coloquei este Noir na lista por conta de sua fina reputação como uma das peças mais importantes do período clássico do gênero. Contudo, a brincadeira acabou cedo demais e justamente na semana em que planejava assistir a “Scarlet Street”. Sem saber que demoraria tanto para considerar assistir novamente, foi apenas agora que finalmente aconteceu. Encontrar na obra um dos melhores de todo o gênero, talvez ainda melhor do que sua reputação sugeria, mostrou quão grande foi meu erro.
Já faz 25 anos que Christopher Cross (Edward G. Robinson) trabalha no banco. Sua recompensa por tanto tempo de lealdade e serviço é uma grande festa de gala e um relógio de bolso de ouro, uma grande homenagem para um homem que foi apenas caixa a vida inteira. Já na meia-idade e infeliz com seu casamento, Chris conhece uma jovem e linda garota por acidente voltando para casa, Kitty March (Joan Bennett). Ele se encanta por ela imediatamente, mas ela tem outro alguém com planos sinistros: Johnny (Dan Duryea) quer que ela use Chris para tirar o dinheiro que os dois acham que ele tem.
Depois de assistir, fica fácil entender por que “Scarlet Street” é considerado um dos exemplos quintessenciais de seu gênero. Ainda sem entrar em méritos de qualidade e eficiência como motivos para ser respeitado e lembrado, é a presença de algumas convenções que vieram a popularizar e construir a identidade do Noir como ela é conhecida hoje. Não se poderia começar com alguma coisa diferente da femme fatale, é claro, a mulher que entra na vida do protagonista e catalisa uma corrente de eventos freqüentemente trágica usando de sua posição de poder, sua influência sedutora em prol de seus próprios interesses. Uma condição social dos Estados Unidos no pós-guerra usada como ponto de partida para a trama se desenvolver, a vulnerabilidade resultante explorada por elementos mal-intencionados para representar um sentimento coletivo de descontentamento. Mentiras e desonestidade por trás de cada atitude aparentemente altruísta, enganação do tipo mais traiçoeiro acontecendo diante dos olhos do espectador. Tudo isso aliado ao uso inteligente de um diretor que teve muita experiência com o Expressionismo em seus anos na Alemanha. Fritz Lang traz os exagerados contrastes imagéticos com um notável toque especial, quando possível, como o marcante letreiro piscando nos momentos finais.
Talvez a descrição soe generalista e ela é mesmo porque foi “Scarlet Street” que ajudou a consolidar tais conceitos como definidores de gênero, principalmente pela eficiência como são trabalhados. A situação de trabalhar em um emprego sem futuro não se limita à época, eles ainda existem aos montes extraindo energia dos trabalhadores sem fornecer qualquer motivação, pagando baixos salários sem perspectivas de avanço. Há quem se acomode e não enxergue as implicações de seu estado, sempre há. Já os que sofrem também estão por aí, continuando em seus caminhos sem forças para mudar e sem idéia para onde ir e o que fazer. O protagonista, Chris, é um exemplo perfeito de pessoa que se deixou levar pela vida e, assim, acabou sendo levado por ela para um lugar que não é todo ruim nem é o ideal, o desejado. Ser caixa de banco estava longe de seus sonhos.
A trama de “Scarlet Street” traz isso como ponto de partida. Mudança é algo desconhecido na vida do homem, então quando a possibilidade bate à porta a tentação de sair da monotonia diária se mostra irresistível. E qual incentivo melhor do que as canelas desnudas e belas de Joan Bennett subindo as escadas para seu apartamento? Seria uma história de amor nas mãos de outro diretor em outra época, mas isso é o Noir, as coisas têm de dar errado. Tão logo que Kitty March, a personagem de Bennett, demonstra suas reais intenções aos olhos do espectador e escondidas de Chris, já se sente um primeiro aperto no coração diante da maldade praticada. Uma pessoa se aproveitando da outra, usando os sentimentos tenros nutridos para arrancar dinheiro e nutrir uma ganância pessoal nunca realizada por fracasso próprio. Se traição a nível pessoal já soa grave, mentiras despudoradas usando a ilusão de sentimentos nobres é difícil de digerir.
Edward G. Robinson alegou que trabalhar neste filme e no anterior, um outro Noir chamado “The Woman in the Window”, foi monótono e que ele não via a hora de terminá-los e passar para o próximo projeto. Curioso que sua opinião seja tão negativa quando sua interpretação é uma das melhores que já vi, sem nenhum sinal de corpo mole transbordando na interpretação e estragando aquilo que se mostra um dos pontos mais altos de “Scarlet Street”. Robinson representa o papel da frustração reprimida pelo tempo, alguém com imaginação o bastante para perceber que a vida é mais do que aquilo que tem, mesmo sabendo que talvez nunca alcance isso. Talvez. Ele não é um completo incompetente e isso é visto claramente nas ocasiões em que ele tem a chance de mostrar um pouco mais de seu conteúdo interno, diferente daquilo que acontece dentro de sua casa. A honestidade da performance denota a simplicidade de pensamento e de natureza do personagem, como ele realmente acredita na sua nova chance de ser feliz.
O problema é que ele acha que sua chance se manifesta através de Kitty. É nesses momentos que a mágica do cinema acontece, quando segredos são compartilhados com a audiência e com mais ninguém, quando esta praticamente sente vontade de avisar os personagens da verdade e não pode. E, pior, tem de agüentar vez após vez a dissimulada Joan Bennett usando suas poucas habilidades para fins desleais. Isso não é nada menos do que charme. Aparência por si não garante isso, ajuda muito — fácil para a atriz — ao passo que é o jeito, a escolha de palavras, a postura que deixam homens desmontados. É uma excelente femme fatale como os melhores exemplos, alguém que corta a carne dos fracos sem esforço. O detalhe interessante é que ela é muito competente e o espectador sabe exatamente o que ela faz; não se deixa enganar, mas tem de conceder que ela é boa mesmo.
“Scarlett Street” é um filme incrível. É perfeitamente possível enxergar os personagens como eles são. Sem precisar chegar no almejado e talvez utópico patamar de parecerem seres humanos reais na tela. Eles são limitados e esse é o grande atrativo deles dentro da história em que se encontram. Eles não são indivíduos extraordinários, senão teriam uma vida melhor, bem longe dos problemas que enfrentam na trama. Todavia, eles possuem algumas características admiráveis, só não sabem disso ou as usam para fins errados. É mágico e trágico ver como por vezes ter em mãos os ingredientes certos é insuficiente, pois é preciso de mais do que isso para sobreviver em mundo de cretinos e trapaceiros.