Ao pensar num filme, um dos primeiros filtros a pelos quais a idéia passa é o seguinte: o material é cinematográfico? Em outras palavras, o conteúdo é filmável ou é muito cheio de particularidades impossíveis de serem vistas por uma câmera. Conceitos, imaginação, divagações e todo o mundo interno de uma pessoa simplesmente não podem ser vistos. Eles existem, claro, porém só podem ser considerados material de cinema se possuírem algum tipo de manifestação física perceptível. Um pensamento pode ser narrado, concretizado usando objetos assim como sonhos podem ser interpretados usando atores em sequências dedicadas. Há sempre um jeito. Ou na maioria dos casos, já que às vezes não se encontra a solução. “The Spirit of St. Louis” se encaixa bem nesse questionamento por se tratar da história de um homem que passa a maior parte do tempo sozinho e num mesmo ambiente.
Os Anos 20 já contavam com aviões passeando pelos ares por razões variadas, do entretenimento ao trabalho. Charles Lindberg (James Stewart) é piloto comercial que trabalha principalmente para agências de correio para entregar cartas entre estados. Perigoso e também a forma mais rápida de enviar correspondência, uma troca que Lindberg que considera mais do que justa e divertida, acima de tudo. Sua paixão pela aviação o leva a buscar algo mais, algo que alguns poucos destemidos tentam também: realizar um vôo sozinho cruzando o Oceano Atlântico de Nova York até Paris. Ele aceita o desafio, por que não?
Eis o problema: “The Spirit of St. Louis” conta a história de um grande feito da história americana, um que se passa dentro de um avião tripulado apenas pelo piloto. Para começo de conversa, talvez o simples fato da apertada cabine ser o ambiente de uma porção considerável do filme já seria o bastante para reclamar de tal falta de variedade gráfica, de ambientes diferentes que podem ser gravados com a infinidade de possibilidades de arranjos de câmera, como de praxe. A cabine de um avião monomotor tem de quase a nenhum espaço, apenas o bastante para o estrito necessário para não ficar pesado demais e atrapalhar a autonomia. Não muito surpreendentemente, todas as tomadas do piloto dentro da cabine são capturadas do mesmo ângulo com variações apenas no tamanho de quadro para incluir closes e outras tomadas mostrando detalhes da cabine. Não soa como uma história das mais cinematográficas, embora trate de uma viagem transatlântica.
Outro detalhe que poderia salvar um pouco a situação seria a presença de outro personagem, pois no mínimo haveria alguém para conversar e possibilitar cenas de diálogo para ocupar as longas horas de viagem. Assim como vários filmes de estrada, uma segunda pessoa possibilita que a conversa possa chegar nos níveis transcendentais de questionar e tentar desvendar as regras do universo enquanto a paisagem fica para trás pela janela. Mas, não, nem isso. “The Spirit of St. Louis” acaba sendo forçado a recorrer a outras soluções que não parecem totalmente atraentes quando descritas, em vez disso soando como idéias pobres para preencher o vazio de uma história que já dava sinais de suas qualidades peculiares desde o começo. Professores, teóricos de roteiro e produtores certamente notariam que um filme de aviação com apenas um personagem poderia ser difícil, talvez até rechaçariam o roteiro. No entanto, é de Billy Wilder que se fala.
“The Spirit of St. Louis” é um dos primeiros exemplos daquilo que veio a se tornar padrão no Oscar há algum tempo. Trata-se da cinebiografia de uma figura história importante, normalmente retratando por que a pessoa se tornou famosa ou mudou o mundo, mostrar seu grande feito sob uma ótica privilegiada para todas as pessoas que não tiveram a chance de presenciá-lo, ou seja, a maioria. Com certeza para o piloto é uma experiência e tanto, estar sozinho dentro de um avião com pouca água e comida durante 33.5h, trocando os tanques de combustível hora a hora e checando mapas para ver se está em curso. É um teste de resistência e das habilidades, além de um tiro no escuro por conta de fatores imprevisíveis como clima e problemas técnicos. Ao menos há conflito para ser encontrado na situação e isso não é esquecido pelo filme.
Mais do que isso, a experiência da viagem é explorada ao máximo possível — o que ainda pode ser pouco, relativamente — por meio de tomadas mostrando o ponto de vista do piloto de fora da janela de seu cockpit. De certa forma, é como olhar pra fora da janela em uma viagem, exceto que é impossível não perguntar como diabos “The Spirit of St. Louis” consegue gravar cenas passando em cima de fazendas no interior do país e sobre oceanos congelados. A resposta é um bombardeiro B-25 modificado para acomodar uma câmera. Simples e talvez um pouco óbvio, mas não atrapalha a ilusão criada entre o corte da monótona cabine de sempre para algo completamente novo que resgata a sensação de maravilha ao encontrar um lugar completamente novo. Também parece como uma solução relativamente padrão para os problemas mencionados antes e talvez até seja. Só que padrão não significa disfuncional e, bem, de fato funciona.
A outra solução é sair completamente do avião e levar a história para outro lugar no espaço e tempo, o clássico flashback. Tão criticado por teóricos, ele pode ser uma ferramenta narrativa pobre em algumas situações por quebrar todas as regras da linearidade e da continuidade para trazer exatamente aquilo que a história demanda, ou seja, uma conveniência. Não necessariamente é assim sempre. Assim “The Spirit of St. Louis” é sobre a viagem, é sobre a pessoa também, sobre sua vida e a experiência que o levou até a fama. Pedaços aparentemente aleatórios de seu passado são trazidos à tona para que o protagonista não seja apenas um piloto de avião famoso e apenas isso. James Stewart inclusive colabora muito para esse aspecto muito embora tivesse 22 anos a mais do que Lindbergh na época. Para alguém como eu, que não sabia a idade real, não foi estranho e pouco importou. Importa mais sua interpretação transmitindo o entusiasmo de uma criança de 7 anos feliz demais em colocar a cabeça para fora da janela e sentir o vento no rosto, assim como parece que o protagonista se sentia dentro de seu avião. Para um filme com tantos problemas aparentes, encontra-se um resultado agradável e tanto.